São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 1996
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Por uma mídia do senso incomum

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA

É mentira o que está publicado na Folha Ilustrada de 9 de julho.
Eu, José Celso, não disse que "despi o Caetano para dessacralizá-lo". Isso é ignorância própria do positivismo da mídia empregada do "senso comum" que não sabe o que é "estraçalhamento" ou "sparagmos" na antropofagia popular ou no dionisismo.
Essa corrente da mídia considera uma questão de profissionalismo estuprar como Penteus o sentido do sagrado e quer agora atribuir ao meu trabalho o rancor que cultua.
Minha arte é dedicada totalmente à sacralização de tudo: do teatro, da vida, da morte e da ressurreição. Caetano Veloso, desde "Rei da Vela", tem sido o Horácio, o maior amigo do Oficina, que tem atuado como "a mais bela tradução", a mais exata mídia do que acontece na mídia ao vivo do que faz o teatro Oficina.
Desta vez, ele foi mais longe. Em vez de escrever sobre "Bacantes", deu seu próprio corpo para uma das mais belas cenas de arte teatral epifanizada no Brasil. E fez tudo por "Justiça e Adoração" a nós do Oficina, ao Brasil, a Pã, a tudo.
Caetano mais uma vez sagrou e sagrou-se, só quero (queremos) sagrá-lo cada vez mais.
Para essa mídia midiar com precisão o que acontece ao vivo no teatro ritual, é preciso apreender muito com Caetano e, depois, começar por estraçalhar seus canais entupidos pelo ressentimento e pela inveja e midiar o senso incomum: os da arte e dos artistas.
Caetano e as Bacantes atuaram como artistas, antropófagos, religiosos, pra lá do "constrangimento", "vexame", "elegância", "do despido ou do vestido", "direitos privados de não ser tocados" etc., adjetivos dos defensores dos valores "dama inglesa" da ordinária classe média.
Mas, por armadilha dos deuses, algumas fotos coloridas, sim, conseguiam revelar o sagrado deste acontecimento mágico.
São como quadros "anticuos", de beleza renascentista, sagrada, divina. Nas imagens, a cor, o mito central, Orfeu, estraçalhado pelas Mênades, apresentado com brilho de ator ritual por Caetano Veloso, está ressagrado para a eternidade.
Esta Cena do Estraçalhamento retratada na estréia de "Bacantes" no Rio é de Arte Sacra Imortal, é só saber olhar com todos os sentidos. Mas o espírito de intriga, tagarela e de mau gosto médio da mídia está profanando essa beleza.
Dionisos, Penteu, o rei de Tebas são estraçalhados pelas maníacas macacas: as Mênades, assim como o deus Touro Preto que uma pessoa do público em cada noite de ritual encarna.
Na eucaristia católica, a hóstia, "estraçalhada" pelo padre na missa e depois e comungada pelos fiéis, é uma versão light desta cena. Os deuses são alimentos e, quando estraçalhados pelos mortais, ressuscitam a força de vida neles e nos mortais.
Só o Deus de um olho só e de "D" maiúsculo, não admite a prática dessa maravilha, ao vivo, no teatro. Infelizmente, ele é o Deus dos críticos e da maioria da mídia que ainda acredita no juízo final e no julgamento de Deus e por isso é cega para midiar a grandeza do ato teatral da eucaristia que acontece todas as noites com o público, na Orgya do Rio ou de SP.
É mentira quase tudo que se escreve sobre as "Bacantes". Dionisos é vitorioso, a cada noite. No dia seguinte, você vai ler o jornal e recebe um banho de água fria e moralismo.
Leitor, não acredite nesse tipo de mídia. Entre você mesmo em contato com a mídia direta corpo a corpo que está viva no nosso ritual. Sexta-feira, dia 12, estamos de volta ao nosso barracão, o teatro Oficina. E pode ser que você tenha a sorte do destino de ser sacralizado, por um estraçalhamento, seja você jornalista, presidente, não importa, um ser vivente que queira mais e mais vida.
Na semana que vem, faremos sessões às 17h para os Eres, teatro infantil para que as crianças que tenham de dormir mais cedo possam vir também ser estraçalhadas nas "Bacantes". Evoé.
Hoje vou ter que ir à polícia depor de novo sobre a mesma cena eucarística em "Mistérios Gozozos", no espetáculo feito em Araraquara, no ano passado.
Tudo porque estamos querendo dizer que o Teatro é filho de Zeus, é sagrado e fazemos.

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