São Paulo, quarta-feira, 17 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Fargo" tem personagens e vidas banais

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Fargo", filme policial dirigido por Joel Coen, não tem grandes reviravoltas, surpresas nem perseguições. Baseado em fatos reais, seu maior interesse está na banalidade de alguns personagens, na simplicidade que há em algumas vidas que se passam, por assim dizer, à margem dos crimes e da história principal.
Um vendedor de carros trapalhão e fracassado resolve contratar dois sujeitos para sequestrarem sua própria mulher. Como ela tem um pai rico, o vendedor planeja ficar com a maior parte do resgate. O falso sequestro se complica, assassinatos se sucedem.
Não há, em "Fargo", a volúpia de violência, o espetáculo sensacional de sangue que é característico de tantos filmes americanos, nos quais a denúncia chocante e a estetização coreográfica do homicídio se confundem.
Em "Pulp Fiction" ou "Cães de Aluguel", de Quentin Tarantino, por exemplo, a graça estava na incompetência profissional, no improviso empolgante das ações criminosas; tudo dava errado em roteiros engenhosos, irônicos, quase que superpovoados de fatos, personagens e idéias.
Aqui, a incompetência dos criminosos não é menor, mas a ironia está em outro lugar; um lugar mais próximo do real. São circunstâncias mínimas e casuais que respondem pelo encanto do filme.
A melhor de todas é o fato de que a policial encarregada de resolver o caso está grávida de sete meses.
Move-se lentamente na tela, ajeita o vestidão enquanto fala ao telefone, tem um apetite colossal e ostenta no corpo, morosa e feliz, o atestado de seu absoluto alheiamento diante dos motivos que podem levar um homem ao crime.
Há muitos outros sinais de distância entre a vida comum e as complicações dos sequestradores.
Uma testemunha conversa com um policial. Diz que viu um sujeito esquisito em um bar, na noite anterior. Seu depoimento é dos mais vagos. Enquanto fala, retira a neve da calçada diante de sua casa.
Os dois, policial e testemunha, estão conversando ao ar livre, cobertos de capotes, gorros, cachecóis. Atrás deles, um céu branco de inverno.
Encerrado o depoimento, a testemunha olha para o céu e faz um comentário banalíssimo: "Parece que vai esfriar... está vindo uma frente fria..." Como se já não fizesse frio bastante; e as duas personagens, destacadas na paisagem deserta, imóvel e surda, desaparecem bruscamente.
A neve, o inverno exercem em "Fargo" um papel silenciador, anti-histérico do ponto de vista cinematográfico.
O filme começa com a tela em branco. E assim acaba. É como que uma ausência de cena, uma declaração de que os fatos narrados no filme surgiram do nada, com a gratuidade de tudo o que acontece de ruim, de fatal na vida.
Entre as cenas de "calor" -cobertores, gravidez, restaurantes de beira de estrada, comidas- e as de "frio" -estacionamentos cobertos de neve, estradas, céus cinzentos, perseguições ao ar livre com as pessoas escorregando-, existe um meio-termo, que na minha opinião é o grande foco de interesse desse filme.
São os sorrisos das pessoas. Quase todo mundo está sorrindo sempre. Um sorriso ao mesmo tempo acolhedor e profissional, que segundo se diz é típico da cultura americana -o "always smile", sorria sempre, que funciona como imperativo básico de comportamento nesse país.
O maior prazer de "Fargo" está em ver as variações desse sorriso americano. O vendedor trapalhão tenta sorrir enquanto enrola seus clientes; depois de uma conversa tensa entre ele, seu sogro e o diretor da companhia que o sogro dirige, a câmera focaliza em close o sorriso feíssimo da moça da lanchonete onde se deu a reunião. O homem do estacionamento, também feio que dói, sorri para o assassino que entrou ali.
É como se entre a normalidade feliz da policial grávida ou da testemunha limpando a calçada e a frieza doentia dos assassinatos em sequência houvesse o espaço comercial, forçado, de relações públicas, representado pelos sorrisos, às vezes embaraçados (o amigo japonês da policial), às vezes automáticos (a moça do caixa), que estão ali sempre prontos para aparecer, com a segurança de um gatilho de revólver, com a previsibilidade de uma nota de cem dólares, com a normalidade da cultura média americana.
O contraponto do sorriso americano é precisamente, nesse filme, o dinheiro. Funciona como o meio-termo maligno do enredo, assim como o sorriso era o meio-termo inofensivo entre o calor e o assassinato. Pode-se perceber, ao longo de "Fargo", um barateamento do crime. Se você antes matava por quarenta mil dólares, no fim do filme uma discussão em torno de quatro dólares já é suficiente para disparar a arma.
O filme termina com uma lição de moral dada pela policial grávida. "Matar em troca de alguns dólares... como é que pode?" E com uma discussão em torno do valor dos selos postais -vale mais um de três centavos ou um de vinte e nove centavos?
Tiraria a graça se eu explicasse o porquê dessa última discussão. Mas é como se, neste filme tão irônico e engraçado, a distância entre vida normal e crime, sorrisos e dinheiro, estivesse o tempo todo tendo de ser estabelecida, delimitada claramente, e ficasse, ainda assim, misturada, como se a moral da história envolvesse, no mundo moderno, sempre uma questão de preço. Para mais ou para menos, pouco ou muito, mas sempre no foco das atenções.

Texto Anterior: Brown lança disco solo em Salvador
Próximo Texto: Paralamas e Science dividem palco francês
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.