São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Uma nova era de ouro do capitalismo?

RUDIGER DORNBUSCH

Existem duas visões da economia mundial hoje. Segundo uma delas, uma nova era de ouro está surgindo, semelhante àquela do final do século 19, quando o capitalismo atingiu sua expansão máxima. De acordo com a outra, o capitalismo já chegou a seu termo natural e fracassou, não no que diz respeito à sua pura e simples capacidade de produzir, mas enquanto processo socialmente aceitável de governo das relações humanas no mercado.
A primeira visão é atraente para um economista que vê a expansão do mercado como precursora de um quadro amplo de prosperidade e progresso.
A segunda está começando a ser ouvida daqueles que acham que o capitalismo venceu no que diz respeito à produção, mas perdeu no quesito igualdade; eles acreditam que a humanidade pode e deve encontrar, finalmente, uma nova forma de partilha. Trata-se de um pensamento nobre, mas de implementação pouco evidente. Então, vamos centrar nossas atenções sobre o que temos pela frente, ou seja, o inusitado âmbito de ação do capitalismo.
Final do século 19: fim ou suspensão dos nacionalismos estreitos, abertura de grandes partes do mundo por meio de tecnologias de transporte e comunicação melhoradas, o advento de classes comerciais dinâmicas que conquistavam precedência sobre as aristocracias representantes do status quo.
Tanto as pessoas quanto o capital eram livres para se movimentar, e foi isso mesmo que fizeram, aumentando, desse modo, a prosperidade do novo mundo. Tudo isso marcou um período de livre comércio e rápido crescimento econômico pelo mundo afora.
Joseph Schumpeter, cuja análise do desenvolvimento capitalista era centrada na "destruição criativa", reconhecia exatamente isso: quando um mundo velho se decompõe, o potencial de crescimento é mobilizado por toda parte, e emergem novas estruturas que podem facilmente levar a um grande e prolongado surto de crescimento.
Hoje o mundo se encontra diante de uma oportunidade semelhante àquela descrita por Schumpeter. Os motivos imediatos disso são quatro:
- um avanço tecnológico dramático, que traz consigo mudanças imensas nas possibilidades de comunicação, desse modo reduzindo as distâncias a nada;
- o fim do comunismo, o resultante surgimento de novos mercados e o abandono das prioridades e alianças tradicionais;
- o fim das estruturas estatais-corporativistas incorporadas ao Estado de bem-estar social e da regulamentação onipresente, na Europa, mas também em boa parte do mundo em desenvolvimento;
- o fim da inflação nos principais países industrializados.
Essa fonte quádrupla de mudanças vai transformar tudo na economia mundial. Novos países, novas indústrias e novas pessoas vão assumir posições de liderança. As chances de surgir um mundo muito mais rico (não com menos desigualdades do que o atual) são muito grandes.
Uma maneira imediata de reconhecer que alguma coisa está realmente muito diferente é o mercado norte-americano de valores. O ambiente favorável acima descrito é captado nos preços recordes das ações. Se o mercado de valores é o pico mais alto a partir do qual se pode avaliar as perspectivas do capitalismo, a mensagem é muito clara: otimismo ilimitado, talvez até mesmo um pouco excessivo.
Mas existem razões sólidas para isso: os investidores não precisam temer que o Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) esteja prestes a fabricar uma recessão para reduzir a inflação. Não existe praticamente inflação alguma, não há inflação há mais de uma década.
Isso é novidade; no passado, o Fed regularmente reduzia o crescimento para frear o superaquecimento da economia. Hoje, minichoques antecipados cumprem o papel desempenhado pelas enormes e custosas reduções de crescimento operadas no passado. Isso significa que o acionista conserva uma parte maior de seu dinheiro, que se desperdiça menos com recessões. As ações devem ficar em alta.
As enormes reestruturações de empresas seguem o mesmo caminho: pegam dinheiro desperdiçado com excesso de funcionários ou tecnologias e instalações desatualizadas. A reorganização aumenta os lucros para o acionista, e as ações devem ficar em alta.
Por último, os governos começaram a promover medidas que ajudam as empresas. Eles compreendem que as empresas podem ser transferidas; para que os empregos sejam mantidos, é preciso tratar o acionista com luvas de pelica. Mais uma razão para as ações em alta.
É claro que nada impede que as ações levem um pequeno tombo. Mas mesmo essa possibilidade encerra um aspecto positivo. Qualquer pessoa que olhe o "crash" de 1987 em retrospectiva deve certamente se lembrar que o maior erro não foi o de ter comprado até o fim do segundo dia. A lição é clara: comprar!
Kenneth Galbraith, cada vez mais o "Tio Patinhas" do capitalismo, diz: "Pequenos aspectos da história do grande 'boom' especulativo e de seu 'dia seguinte' mudam. Mas uma parte muitíssimo maior permanece igual" ("A Short History of Financial Euphoria", "Uma Breve História da Euforia Financeira"). Talvez a última palavra venha a ser dele, mas quem seguiu seus conselhos três anos atrás deixou passar uma grande oportunidade.
As razões por trás desse extenso período de prosperidade são reais: livre comércio em todo o mundo, a mobilização de mais de dois bilhões de pessoas para sair dos mercados fechados e reprimidos em busca de futuro e fortuna no comércio mundial, uma mobilidade sem precedentes de idéias, "benchmarking" por padrões mundiais de qualidade, a disseminação de tecnologias e dinheiro para os pontos mais longínquos do mundo.
O velho mundo que era o centro tradicional de status e poder está sendo rapidamente sobrepujado pela Ásia. Nos próximos 20 anos, mais de dois terços da produção extra no mundo serão gerados em economias emergentes, a maior parte na Ásia. É a vitória de Schumpeter.
Onde estão os revezes que poderiam opor obstáculos a essa visão tão instigante? Uma questão imediata é que a Europa e o Japão tropeçam.
A batalha de Maastricht é uma das idéias genuinamente ruins na história européia; é verdade que é preciso reduzir os orçamentos, mas fazê-lo de uma só vez e às pressas, sem prever a expansão monetária, parece constituir uma receita de desaceleração a curto prazo. No fim das contas, a reestruturação gera crescimento, mas só se as autoridades monetárias forem cúmplices de boa vontade.
Outro risco é que a abundância de oportunidades de investimento gera uma escassez geral de capital, altas taxas de juros reais e, consequentemente, créditos ruins.
Certamente a importância desse risco está sendo exagerada. Muita coisa poderia ser feita para erguer e fortalecer a China, a Ásia ou o mundo emergente inteiro. Mas sem instituições operantes e plena garantia dos direitos de propriedade, o desenvolvimento levará décadas, não anos.
A necessidade de investimentos é grande e urgente, mas o ritmo será mais moderado. No século 19, também, a infra-estrutura era a palavra mágica que atraía investimentos em escala extraordinária. No entanto não se viu nenhuma escassez de capital.
O terceiro risco é político: capitalismo demais, novos jogadores demais mascarando o capitalismo, excesso de jogadores velhos e lentos caindo à beira do caminho. É a receita certa para uma reação contrária. Esta ainda não aconteceu e, nos Estados Unidos, onde a reestruturação e a concorrência têm sido mais fortes, é menos aparente.
Os governos, em sua maioria, estão falidos, e isso é um importante fator estabilizador. Impõe um ônus maior ao indivíduo. Quando se perguntou ao líder trabalhista britânico o que se deveria fazer em relação ao desemprego, sua resposta foi que as pessoas teriam que trabalhar mais pela própria "empregabilidade". Uma bem-vinda mudança de perspectiva que marca o espírito deste final de século.
As grandes oportunidades do século 19 foram perdidas devido ao nacionalismo maluco, às grandes guerras e à emergência de um Estado todo-poderoso controlando a atividade econômica. O mundo está em paz, pelo menos por enquanto: as velhas potências estão cansadas de lutar, e as novas não estão prontas para isso.
Talvez esteja aí a maior garantia de uma perspectiva de oportunidades de grande desenvolvimento mundial numa economia mundial livre, aberta e competitiva.

Tradução de Clara Allain

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