São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Educando o olhar

MARIO CESAR CARVALHO

Com salas de Goya, Picasso, Munch, Klee, Warhol, Towmbly, Bourgeois e Basquiat, a 23ª Bienal será uma festa para os olhos
Em outubro de 1953, "Guernica" passou três, quatro dias dentro de um prédio sem portas em São Paulo. O painel de Picasso chegou num caminhão coberto com lona furada e foi deixado no Pavilhão da Bienal.
O prédio no parque Ibirapuera recebia os últimos retoques, mas não tinha portas. "Se alguém quisesse levar 'Guernica', só teria dificuldade por causa do tamanho", diz Guimar Morelo, 62, funcionário da Bienal desde 1949, referindo-se ao catatau de 8 m de largura por 3,5 m de altura sobre os horrores da Guerra Civil Espanhola.
Em outubro deste ano, quando desembarcarem 35 Picassos para a 23.a Bienal Internacional de São Paulo, a cena de "Guernica" com portas abertas parecerá jurássica. "Hoje Picasso requer uma operação de guerra", conta Nelson Aguilar, 50, curador da maior mostra de arte do país.
Por operação de guerra, entenda-se mais de um ano de negociações com o Centro Georges Pompidou, de Paris -o qual cedeu cinco telas, entre as quais "O Acrobata Azul"-, e US$ 500 mil gastos para assegurar o lote avaliado em US$ 350 milhões.
Picasso, o artista mais requisitado do mundo, é o abre-alas de uma Bienal que terá salas especiais de Goya, Edvard Munch, Paul Klee, Andy Warhol, Wilfredo Lam, Cy Twombly, Louise Bourgeois e Jean-Michel Basquiat.
"Universalis"
A exposição, no entanto, não se restringe ao porto seguro da tradição moderna. Pela primeira vez será realizada a mostra "Universalis", um mapeamento da arte contemporânea feito por seis dos principais curadores internacionais (leia quadro com os artistas escolhidos para a "Universalis" à pág. 15).
Na "Universalis", Picasso será confrontado com uma das matrizes do cubismo -a arte africana.
Pela primeira vez também, cada um dos 74 países terá de mandar um só artista, e não três, como era hábito.
"A Bienal era uma ONU. Cada país trazia o que queria. Vinha obra da sobrinha do presidente, da amiga do ministro. Recebíamos mais coisas criticáveis do que elogiáveis", diz Edemar Cid Ferreira, 53, presidente da Bienal, justificando a "Universalis" e a restrição a um artista por país. "Agora está nascendo uma nova Bienal."
O diplomático "criticáveis" de Ferreira, na maioria dos casos, era lixo mesmo.
O salto não vai sair barato, segundo ele. A 23.a Bienal está orçada em US$ 8 milhões, 10% dos quais vão para o seguro de Picasso. É o dobro do que custou a última mostra.
A Bienal e o Ministério da Cultura entram com mais R$ 2 milhões cada. A novidade é que Ferreira convocou o que considera os dez principais publicitários do país, entre os quais Washington Olivetto e Nizan Guanaes, para levantar ao menos R$ 4 milhões com anunciantes.
Desmaterialização
Não faltarão bambas da mídia a serem "vendidos". Goya, Munch, Picasso e Klee foram escolhidos porque têm, diz Aguilar, algo para iluminar o tema da Bienal -a desmaterialização, a idéia de que a arte moderna e a contemporânea vão se distanciando do sólido.
Cronologicamente, esse movimento começa com o espanhol Francisco Lucientes y Goya (1746-1820), no final do século 18, na visão de Aguilar.
Nas gravuras que serão mostradas na Bienal, é o tema do trabalho que começa a se desmaterializar. Goya não retrata nada de muito concreto -mostra fantasmas e delírios.
A obra do dinamarquês Munch (1863-1944), de quem a Bienal mostrará 37 trabalhos, já não narra mais nada, retrata estados de espírito, como aparece na sua obra mais célebre, "O Grito", que estará na Bienal.
Com Picasso, segundo Aguilar, acontece a partir de 1907 uma explosão com o cubismo. "Aí é a desmaterialização mesmo", diz. "Não há vestígio de descrição, só idéias".
Para mostrar esse "big bang", a Bienal trará trabalhos de Picasso (1881-1973) feitos entre 1895 e 1971, dois anos antes de sua morte.
Virão obras do Beaubourg, de Paris, da Robert Miller Gallery, de Nova York, e do Sprengel Museum, de Hannover, na Alemanha, entre outros museus.
Aguilar deu de ombros para a máxima do crítico norte-americano Clement Greenberg, segundo a qual a obra de Picasso só é interessante até o final dos anos 30. "Picasso é como futebol, todo mundo tem uma opinião diferente. Quero ver o que a nova geração vai dizer sobre o que foi relegado por outras", afirma.
Do suíço Paul Klee (1879-1940), a Bienal também fará uma retrospectiva. Serão 70 trabalhos ligados à desmaterialização porque Klee vai se restringindo aos elementos básicos da pintura e do desenho -o traço, o ponto, o claro-escuro.
Já em Andy Warhol (1928-1987), o foco será mais fechado. Virão só retratos, entre os quais os de Elizabeth Taylor, Jacqueline Kennedy Onassis e Mao Tse-Tung. A idéia é mostrar como Warhol transformava pessoas em logotipos.
O choque
O núcleo histórico da Bienal deve funcionar como uma espécie de vestibular para a "Universalis", segundo Aguilar. Nessa mostra, já não há mais parâmetros claros para julgar, como acontece com os artistas que já entraram para a história. É tudo pantanoso e confuso -e é assim mesmo que deve ser, afirma o curador.
Um dos artistas da "Universalis" costuma provocar o mesmo mal-estar que Marcel Duchamp causou nos anos 10 ao enviar um urinol a uma exposição. É o norte-americano Tom Friedman, 30. O urinol de Friedman são pêlos púbicos grudados em um sabonete usado, uma de suas esculturas que escandalizaram os Estados Unidos.
Pêlos púbicos não são o único material estranho ao mundo da arte que costuma usar -ele recorre a macarrão, pasta e palitos de dente, chiclete, aspirina e fezes. O susto é que Friedman usa tudo isso com a delicadeza de um criador de iluminuras medievais.
Ousadia maior, talvez, só mesmo a do curador que escolheu Friedman. Entre os seis artistas dos EUA que selecionou, Paul Schimmel, diretor do Museu de Arte Moderna de Los Angeles, trará Julie Becker, uma californiana de 23 anos, que nunca fez uma exposição individual.
O japonês Yukinori Yanagi, 36, vencedor da mostra de arte jovem da Bienal de Veneza de 1993 (a Aperto), extrai poesia de pragas -formigas, mais especificamente saúvas, na obra que vai fazer no Brasil.
Yanagi fará um painel de 15 m de largura por 2,5 m de altura, no qual as saúvas vão picando bandeiras de dezenas de países. É, literalmente, uma obra viva. Só existe se as saúvas criarem uma colônia dentro do trabalho.
Outra estrela da "Universalis", esta já consagrada, é o russo Ilya Kabakov, 66. Desde que deixou a então União Soviética, em 1988, vem assombrando exposições internacionais.
Ex-ilustrador de livros infantis, Kabakov enterrou a idéia de que a arte russa havia acabado logo após a Revolução de 1917. Faz isso usando os maiores clichês que o Ocidente tem da Rússia -desordem, decadência, escândalo e ruínas.
O segredo de Kabakov é transformar metáforas em coisas concretas. Para se referir ao clichê de que a vida é uma porcaria, montou uma instalação na Documenta de Kassel em 1992, na qual uma mesa de jantar está colocada ao lado de vasos sanitários. Nome da obra: "O Banheiro".
Uma das pretensões da "Universalis" é mostrar que Paris, Nova York ou Colônia não têm mais o monopólio das vanguardas, que um novo Picasso pode surgir nas ilhas Negros, nas Filipinas (terra de Heri Dono), ou em Manaus, onde vive o artista Roberto Evangelista.
Nessa nova ordem, o cineasta alemão Wim Wenders -nome mais famoso da "Universalis", onde vai expor imagens trabalhadas em computador- torna-se pouco mais do que um zé mané.
"Lembra a frase de Che Guevara? 'Não queremos um, mas dois, três vietnãs'", pergunta Nelson Aguilar, referindo-se à vontade do guerrilheiro de espalhar revoluções mundo afora. A idéia, segundo ele, foi derrotada no mundo político, mas é a nova onda da arte.

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