São Paulo, quarta-feira, 31 de julho de 1996
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"Underground" é obra-prima feita de rancor

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não conheço muita gente que tenha visto "Underground", filme do iugoslavo Emir Kusturica. Saiu de cartaz, mas está agora disponível em vídeo. Talvez seja o melhor filme do ano.
"Underground" é tão bom que exige do crítico uma séria infração ética.
Obriga o comentarista a contar muito do que acontece, a estragar as surpresas que reserva ao espectador.
Estou diante de uma armadilha técnica: só posso elogiar o filme estragando um pouco o prazer de quem o vê.
Mas é impossível apontar uma das maiores qualidades de "Underground", a saber, sua exuberância técnica, sua criatividade visual, sem descrever as cenas do filme.
E o fato é que cada cena do filme reserva uma surpresa para o espectador, a qual corro o risco de estragar.
Logo no começo, vemos um garoto gago alimentando os animais de um zoológico em Belgrado. De repente, os animais se inquietam. Pássaros se chocam contra as grades do viveiro. O garoto gago não sabe o que está acontecendo. Tigres dão urros, macacos choramingam. O zoológico se agita.
A câmera focaliza, então, um avião nazista cruzando o céu. Trata-se de um bombardeio! Estamos em 1941, Belgrado sofre o ataque dos alemães. Ouso dizer que nunca uma cena de guerra foi filmada deste modo: da perspectiva dos animais num zoológico.
Estraguei, claro, a primeira surpresa de quem vê esse filme. Mas "Underground" é feito de tantas surpresas, uma atrás da outra, que esta crítica seria totalmente vaga e entusiástica se não as revelasse.
O resultado do bombardeio é dos mais estranhos: um macaco agoniza, como se fosse humano. Elefantes, zebras e tigres circulam livremente na cidade arrasada. O efeito é quase surrealista.
Mas é verdadeiro também. Um elefante, à solta depois do bombardeio alemão, pega com a tromba os sapatos de um dos personagens principais. A cena seria digna de um Buñuel -mas tudo indica que ocorreu na realidade.
Aqui entramos no centro estético do filme de Kusturica: tudo o que se passa é inverossímil, tudo o que vemos é absolutamente doido, mas ao mesmo tempo é plenamente possível de ter acontecido.
Haverá definição melhor para o que acontecia nos países do Leste Europeu? Uma enorme farsa erigida em nome do socialismo; um gigantesco empenho de mistificação de massas, ocultando puras ditaduras pessoais; o reino da hipocrisia, a farsa com F maiúsculo.
Esse é o tema do filme de Kusturica: o quanto de cinismo, de espírito criminoso, de canastrice estava atrás da manutenção do "socialismo" real.
A história de "Underground" é devastadora. Sem avançar muito no que acontece no filme, digo apenas o seguinte: Kusturica mostra que dois camaradas, peças importantes na resistência ao nazismo, no fundo não passavam de gângsteres.
É difícil ver uma denúncia tão forte, tão raivosa, tão extrema do sistema socialista. Tudo parece ter sido obra de criminosos, de escroques, no filme de Kusturica.
Crni, o bruto, é uma força da natureza, trata de enriquecer e de obter favores sexuais em nome da resistência antinazista. Marko ilude Crni, exercendo o papel de intelectual, de ideólogo e poeta comunista no regime de Tito, ao mesmo tempo que, secretamente, se especializa como traficante de armas.
Nada sobra do socialismo nesse filme. A crítica de Kusturica provém de um indivíduo que viveu a farsa. Mas tento analisar o filme um pouco mais de perto.
Dois conceitos, na minha opinião, estão em jogo em "Underground". O primeiro é o da inverossimilhança; o segundo, o da mistificação.
Toda a história do filme, a começar pelas cenas do bombardeio no zoológico, é pautada pela mais clara inverossimilhança.
Ou seja, tudo o que aparece em "Underground" é surrealista, fantástico, mas ao mesmo tempo factual, documentado, verdadeiro.
Kusturica mostra uma realidade absurda, surpreendente. Só que, de outro lado, mostra o poder mistificador do comunismo. Marko, o personagem cínico, arma todo um esquema para convencer seu amigo Crni de que a Segunda Guerra não terminou. É um mentiroso profissional a serviço do regime e de si mesmo.
A falsidade mal-intencionada dos comunistas aparece como um estratagema canalha, mas sensato, diante do absurdo concreto, doloroso, inverossímil da vida como ela é.
Imagino que essa seja a mensagem, o "conteúdo" do filme de Kusturica. Mas a forma de "Underground" aponta, creio eu, para algo diferente.
Aponta, em imagens belíssimas, de uma exuberância visual, de uma genialidade há muito desaparecidas do cinema europeu, para uma confiança e um otimismo vitais.
É difícil, para mim, explicar o impacto desse filme. Sinto que sua riqueza visual, seu ímpeto cinematográfico, sua condição de obra-prima indiscutível, representam uma espécie de vingança contra a ficção burocrática, contra a mentirada cínica do socialismo realmente existente no Leste europeu de alguns anos atrás.
Mas, ao mesmo tempo, "Underground" denuncia a mentira, o fascínio, a manipulação que sabe exercer tão bem sobre o espectador.
Mostra-se falso, para mostrar a falsidade política; mostra-se vital, numa denúncia à vitalidade criminosa dos personagens que retrata; é violento, na sua crítica à violência; é absurdo, na crítica ao absurdo real da história; é realista, à medida que incorpora o absurdo da realidade histórica.
É uma obra-prima feita de rancor; nunca o comunismo foi condenado com tal vivacidade. Mas são cores tão vívidas, as empregadas por Kusturica, que soam falsas, surrealistas. Ele sabe disso, mas não se importa.
Quer ser radical, inverossímil, maluco. E consegue. Quer ser artista, e é artista nesse filme. Mas só é artista enquanto se faz, ele também, mago da inverossimilhança e da farsa, do mesmo modo que os comunistas que critica.
Kusturica fez um filme que só é bom porque é tão falso e doido quanto o comunismo. Abomina os próprios mecanismos de que faz uso; transforma em surrealismo o que era mistificação; mas surrealismo verídico, contra a mentira real.
*
Tenho escrito artigos às quartas e sextas neste espaço. Quando comecei a colaborar na Ilustrada, em 1990, fazia só um artigo por semana. Foi por volta de 1993 que passei a escrever duas vezes. Foi demais. A meu pedido, volto a escrever só nas quartas. Carlos Heitor Cony ocupará o espaço das sextas.
A questão é mais ou menos esta: para mim, andava ficando pesado demais aparecer duas vezes por semana no jornal. Andei sentindo em mim mesmo uma pressa, um desespero na atividade de dar opiniões, de interferir, de me expor ao público.
Fiquei com medo de que esta coluna se transformasse num "fast food". Antigamente, preparava-a com mais capricho.
O leitor ganhará, a partir desta sexta-feira, artigos mais longos de Cony. Um escritor muito mais solto, mais livre do que eu, que sempre fico às voltas com o escândalo que é ter uma coluna só para mim.
No caso de Cony, não há escândalo: há justiça histórica que se cumpre. Pois ele sabe ser subjetivo, pessoal, livre em página impressa, de uma maneira que eu nunca soube fazer.
Sou argumentativo, sinto-me sempre trêmulo quando digo o que penso. E o trabalho que isso dá, dizer o que penso, expor-me ao público, só eu sei o quanto custa.
Imagino que Cony, mais velho, mais perseguido, mais forte talvez, aguente melhor o tranco. Para mim, escrever menos é um alívio. Para Cony, escrever mais deve ser tranquilo.
Para o leitor, há de ser um prazer. Para a Folha, varia o tom, melhora o astral. A rabugice de Cony é mais leve que meu pânico, de modo que todos saímos ganhando, espero, de minha decisão. Até quarta que vem.

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