São Paulo, sexta-feira, 2 de agosto de 1996
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A pátria não é ninguém, são todos

MARIO SIMAS

Quer nos parecer impertinente, a esta altura, alimentar debate maior atinente ao direito das famílias Marighella e Lamarca receberem ou não indenizações por parte do Estado. Já tivemos ocasião de registrar nesta Folha que o direito civil, até agora, não encontrou fórmula outra para a reparação do dano.
Carlos Marighella e Carlos Lamarca, de arma em punho, ousaram combater a ditadura. Podemos divergir da postura de ambos. É válido dizer que não souberam avaliar o momento político de então para desencadear a luta armada. É incontestável que superestimaram forças políticas que se diziam revolucionárias, isto da boca para fora.
Mas não podemos deixar de reconhecer, a bem da verdade, que jogaram tudo, tudo mesmo, pela causa que abraçaram. Tal como hoje, àquela época a mídia presidia o espetáculo. Dentre as posições que um homem pode assumir frente à realidade da vida e em termos de opção política, Marighella e Lamarca adotaram a do homem inteiro, do homem em pé, do homem coerente, que, queiramos ou não, hão de merecer respeito. Integram a história do Brasil.
O generalíssimo Franco, fascista de alto coturno, fez construir um monumento maior do que a Basílica de São Pedro, nas cercanias de Madri, homenageando esquerdistas e direitistas que morreram durante a Guerra Civil Espanhola. Tiveram a memória respeitada.
Os Estados Unidos reverenciam e homenageiam indistintamente confederados e ianques, sem que os sulinos tenham sido considerados historicamente traidores, inobstante terem lutado pela secção do território americano.
Marighella, conforme noticiam os autos do processo 207/69, oriundo de inquérito feito pelos beleguins da ditadura, e que se acha arquivado no Superior Tribunal Militar, se não supliciado até a morte nos porões da repressão política, foi morto, colhido de tal forma por quase meia centena de policiais, sem que pudesse esboçar qualquer reação, sem entrevero, sem resistência. Foi simplesmente executado.
Lamarca, por sua vez, de acordo com documentação hoje trazida a público e que se achava nos cofres da Polícia Federal, extremamente doente, terminal mesmo, foi abatido a tiros de fuzil, disparados à distância, quando dormia, no sertão da Bahia, ao pé de uma árvore. Foi simplesmente executado.
A guerra também tem suas leis. Assim como no direito penal, a pessoa do réu é sagrada, na legislação relativa à guerra está escrito que nenhum inimigo feito prisioneiro poderá ser torturado.
Não tem o sabor de Justiça e, convenhamos, apresenta-se incongruente indenizar apenas as famílias dos que foram considerados "desaparecidos", depois de cativos. Grave-se, por respeito à história, que, em verdade, não havia inimigos, mas sim adversários políticos, daí porque sempre atual a lição de Rui Barbosa: a pátria não é ninguém, são todos.

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