São Paulo, sábado, 3 de agosto de 1996
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Medalha tem gosto de azinhavre

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Bronze com gosto de azinhavre. Mas a goleada sobre Portugal, o mesmo Portugal que azedou o vinho argentino há uma semana, pelo menos, haverá de servir para adoçar um pouco o fel destilado pelo país todo que esperava, no mínimo, o ouro. Pelo menos, mata-se a sede de linchamento que anda ressecando a boca brasileira.
*
O Brasil se desmilinguindo em cada segundo tempo, e o preparador físico Prima se explicando: faltou um líder, alguém com aquele instrumental de que tanto se ufanava Collor e seus semelhantes.
Pronto: tocou no ponto que nos é mais sensível.
Na vitrola, rola um velho samba que exalta nossos mais caros valores, da liberdade à batucada, de Santos Dumont a Noel Rosa, passando por Ruy Barbosa e Duque de Caxias e terminando neste precioso verso: "Tem ainda um grande homem/ Destemido e braço forte/ Oi, por esta terra, dou meu peito à própria morte". E vai em frente: "Oi que terra boa, para se ganhar o pão... Terra da liberdade, onde o verso é um esporte/ Por esta terra, dou meu peito à própria morte".
O grande homem, destemido e braço forte, para os mais desavisados, era Getúlio Vargas, o ditador que dominava com punhos de ferro a tal terra da liberdade, onde o verso era um esporte.
O esporte, hoje, virou verso, o que não quer dizer que signifique avanço nenhum. Em compensação, voltou a raiar a liberdade, dispensando-se os ditadores de plantão, mas seguimos nostálgicos dos grandes homens, destemidos e de braços fortes.
Sempre que algo não vai bem, apela-se para a figura ideal do líder, aquele que dá um murro na mesa, mostra os ditos cujos roxos, grita, xinga, berra, põe ordem na casa, faz e desfaz, mesmo que a história se canse de revelar o fim dessa triste figura: borrando-se num bunker, vagando pelas ruas desertas dizendo coisas sem nexo, travestido de polinésio numa ilha paradisíaca ou com um tiro no peito.
No futebol, não é muito diferente: o herói de ontem é o canalha de hoje, e vice-versa. Lembro-me, por exemplo, que o mesmo Rivelino, que hoje clama pela TV a ausência de fibra no time olímpico, foi escorraçado do Parque São Jorge, logo depois da incrível perda do Campeonato Paulista de 76 para o Palmeiras. Acusação: faltou-lhe fibra, logo a ele, o líder, o craque, o ídolo de todo corintiano, vivo ou morto. Dizem que terminou o jogo aliviando-se de suas dores estomacais nos vestiários.
E Gérson, o Canhotinha de Ouro, o maestro do tricolor bicampeão paulista (70/71), o "duce" implacável da conquista do México, que de tão siderado na vitória pela vitória batizou a lei do vale-tudo, a Lei de Gérson, ainda que contra sua própria vontade.
Pois de Gérson diziam, na Copa de 66, que havia ingerido pasta de dente para escapar, pelo sanitário, do desastre diante da Hungria e Portugal.
Mestre Ziza foi banido da seleção para sempre, sob o estigma de mercenário. Araken Patuska ganhou o apodo de "bailarina", não pela elegância do estilo, mas por tirar os pezinhos delicados das jogadas mais bruscas na Copa de 34, e assim vai até chegarmos a Pelé. Quantas vezes não ouvi o infame desabafo "negro safado, só pensa em dinheiro!"
Alguns, como Gérson, Rivelino e Pelé deram a volta por cima. Outros, naufragaram na mais vil humilhação.
Mas essa abstrata e falsa figura do líder continua pairando sobre nossos campos, assombrando nossos craques, exorcizando a incompetência dos demais.

Hoje, excepcionalmente, não publicamos a coluna de Matinas Suzuki Jr.

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