São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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O ovo de Pinochet

ROBERTO CAMPOS

Para os liberais, o debate corrente sobre a reforma da Previdência Social é melancólico. O INSS é um desastre ambulante. Ou antes, titubeante. A proposta original do governo foi tímida. Remenda o sistema, quando é necessário mudá-lo. Substitui a cirurgia indispensável por um emplastro convinhável. E a Câmara dos Deputados reduziu esse emplastro a um bandeide...
No seu longo repertório de absurdos, a Constituição de 1988 misturou, no conceito de Seguridade Social, três coisas diferentes: a Previdência, cujos benefícios devem ser custeados por contribuições; a assistência social aos desvalidos, que exige cobertura orçamentária a fundo perdido; e a saúde, cujo financiamento tem de ser partilhado entre o Orçamento e o setor privado. E criou três sistemas financeiros paralelos com dupla ou tripla tributação: os tributos ordinários, as contribuições sociais e os impostos sindicais. Todos, naturalmente, com suas ponderosas burocracias...
O sistema previdenciário tem dois defeitos devastadores. Primeiro, é de "repartição simples", de modo que os trabalhadores atuais pagam pelos aposentados, ao invés de acumularem poupança capitalizada para seu futuro. Segundo, a administração da poupança é estatizada, pois todos temos de entregar nossas contribuições a esse administrador perdulário que é o governo.
O INSS não satisfaz a nenhuma das funções esperadas de um sistema previdenciário minimamente eficaz:
1) a função securitária, pois não paga aposentadorias decentes;
2) a função redistributiva, pois redistribui ao contrário, transferindo receita dos mais pobres para os beneficiários de aposentadorias precoces ou especiais (estas no setor público);
3) a função desenvolvimentista, pois as contribuições cobrem gastos correntes, tornando-se indisponíveis para investimentos e fortalecimento do mercado de capitais.
Longe de ser uma "conquista social" dos cidadãos, obtida do Estado benfeitor, a Previdência Social brasileira é uma imposição do Estado predador: 1) constitui uma violação dos direitos humanos; 2) é instrumento de uma tríplice rapina; e 3) carece de viabilidade atuarial.
Um dos direitos fundamentais do cidadão deve ser o de escolha do agente a quem confiar a administração de sua poupança (particularmente a previdenciária, que é a garantia da subsistência futura). Os liberais admitem que se exija uma contribuição compulsória, para evitar que estroinas chupem frivolamente as tetas do Tesouro. Mas não aceitam que essa contribuição seja obrigatoriamente administrada pelos burocratas de Brasília. Deve ser facultado ao cidadão, em qualquer nível de renda, optar pela aplicação de sua poupança em fundos privados, por meio de uma "caderneta previdenciária", semelhante às cadernetas de poupança. O sistema atual é profundamente injusto para os mais pobres. Os mais abastados podem recorrer à previdência complementar privada, escolhendo e fiscalizando o administrador de sua poupança, enquanto os pobres ficam escravizados ao INSS. Curiosamente, a previdência pública compulsória encontra apoio nos sindicatos operários, que deveriam ser os primeiros a reclamar contra essa discriminação. A única explicação é o fenômeno patológico que Ayn Rand descreveu como a "sanção da vítima".
Em que consiste a "tríplice rapina"? No atual sistema de repartição, as contribuições de empregadores e empregados caem numa vala comum, inexistindo vinculação direta entre contribuições e benefícios. Grupos politicamente organizados obtêm, por meio de aposentadorias especiais, benefícios muito superiores à contribuição.
É o caso de magistrados, congressistas e professores. A segunda rapina, facilitada pela administração centralizada no Estado, é a das fraudes; a fraude do contribuinte, que é a sonegação; e a fraude do beneficiário, que é a falsificação de nomes e documentos para obtenção de privilégios indevidos. A terceira rapina é a da burocracia estatal de fiscalização. Os fiscais intimidam com multas vultosas e embolsam, em parte ou no todo, o "perdão" dado ao empresário. No INSS há 334 processos contra funcionários acusados de fraudes.
O último (e fatal) defeito do atual sistema é sua inviabilidade atuarial em resultado da "segunda transição demográfica". A "primeira transição" foi o declínio da natalidade. A segunda é o "envelhecimento" da população, fenômeno inquietante para o "Welfare State", pois os inativos representam uma proporção cada vez maior da população total. A evolução é dramática na Europa e Japão, mas começa também a preocupar o Brasil, pois que cerca do ano 2000 se estima que tenhamos a sexta população de idosos do mundo. Procura-se retardar a crise por meio de várias medidas como: aumento das contribuições (medida contraproducente, pois aumenta o custo de produção e gera desemprego); elevação da idade mínima para aposentadoria; e redução de benefícios. Todos esses ajustes encontram enormes dificuldades políticas, pois os aposentados se organizam melhor para defender seus "direitos adquiridos" do que os jovens e ingressantes no mercado de trabalho.
Nos Estados Unidos, por exemplo, há grande frustração nas novas gerações, que se vêem sobrecarregadas pelas contribuições ao "Social Security", a ponto de se sentirem condenadas a um nível de vida futuro inferior ao dos aposentados de hoje. Um provocante autor, Lester Thurow, chega a afirmar que o grande conflito do século 21 não será mais o conflito marxista de classes e sim o conflito entre velhos e jovens dentro da mesma sociedade.
Para a solução dos dilemas previdenciários não existe nenhum "ovo de Colombo". Mas existe o "ovo de Pinochet". O Chile foi pioneiro na adoção do sistema de capitalização individual. Os empregados passaram a aplicar suas antigas contribuições em cotas de fundos de pensão, administradas competitivamente por empresas especializadas, livremente escolhidas. A contribuição dos empregadores foi transformada em aumento não-inflacionário de salários, da ordem de 20%.
O governo se limita a supervisionar o sistema, destituindo as más administradoras a fim de proteger o patrimônio dos trabalhadores. E garantirá um "mínimo vital" àqueles que ao fim da vida laboral não logrem acumular recursos para suas subsistência. Nesse caso, o seguro social se transformaria em "assistência social".
Vinculados os benefícios à poupança individual capitalizada, desaparecem os vários tipos de rapina, anteriormente mencionadas. A competição entre as administradoras obriga-las-á a detectar os melhores investimentos, pois sofrerão contínua cobrança e fiscalização dos cotistas. Democratiza-se o capital, pois os trabalhadores se tornarão, por meio dos fundos, acionistas das Bolsas.
As vantagens do modelo chileno são tão óbvias que custa a entender por que o governo FHC se empenha numa desgastante luta política para remendar temporariamente um INSS falido. Esse modelo já está sendo imitado por Peru, Argentina e Colômbia. Nos Estados Unidos, economistas eminentes como Gary Becker e Martin Feldstein recomendam a privatização da "Social Security" para elevar a taxa de poupança e evitar passivos potenciais. O Brasil teria de enfrentar altos custos de transição, que seriam entretanto certamente menores que os da falência do atual sistema.
Já que falamos no "ovo de Pinochet", corrijamos uma deformação de nossa mídia, que costuma satanizar Pinochet e beatificar Fidel Castro. Aquele foi ditador por 16 anos e este está no poder há 37 anos. Pinochet aceitou a derrota nas eleições e deixou o país democratizado. Fidel considera-se "El Jefe Perpetuo". As vítimas da revolução chilena foram menos de um terço das execuções de Fidel Castro, sem contar os afogados no Caribe, os prisioneiros políticos e os exilados na Flórida. Cuba estagnou e até retrocedeu no tempo, passando de mendigo dos socialistas a mendigo dos turistas. O Chile cresceu anualmente 6,5% na última década e passou de devedor insolvente a exportador de capitais. "Quousque tandem"? -até quando as esquerdas brasileiras exibirão avaliações históricas dignas do Q.I. de um orangotango?

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