São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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O obscuro farol 'Europa'

BERNARDO AJZENBERG
ENVIADO ESPECIAL A VENCE (FRANÇA)

Eduardo Lourenço, 73, é figura preponderante e venerada nos meios intelectuais de Portugal há mais de 40 anos. Espécie de "outsider" em matéria de política, embora tenha se mantido sempre no "campo do socialismo", tem dezenas de obras publicadas, a sua maioria com ensaios filosóficos e literários, além de artigos publicados em jornais.
Pouco conhecido no Brasil, recebeu em abril deste ano o Prêmio Camões. Além disso, recebeu ao longo de sua carreira, desde o lançamento de "Heterodoxia", em 1949, diversos prêmios na Europa.
Licenciado em ciências histórico-filosóficas na Universidade de Coimbra, Lourenço, trabalhou nos anos 50 nas universidades de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier. Em 1958 e 1959, lecionou na Universidade da Bahia, passando a partir de 1960 a trabalhar em universidades francesas.
Lourenço vive desde 1974 em Vence, vilarejo de 15 mil habitantes a 20 quilômetros de Nice, na Côte D'Azur francesa, com sua mulher, a professora universitária francesa Annie Salomon. A casa, de decoração despojada, com uma imensa biblioteca no espaço originalmente previsto para ser garagem, é cercada por ciprestes plantados pelo próprio professor e seus fundos trazem a vista das montanhas dos chamados Alpes Marítimos. Foi ali que Lourenço recebeu a Folha para conversas que duraram horas, sucedidas pela seguinte entrevista.
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Folha - O sr. escreveu em 95 uma crítica à existência do Prêmio Camões, em contraposição ao Prêmio Cervantes. Poderia explicá-la?
Lourenço - Na assinatura do documento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) o presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o nosso caso não funcionou, como o hispânico, porque temos a dificuldade das distâncias geográficas entre três continentes. É pertinente, mas parcial. Na verdade, o espaço hispânico é mais orgânico, seus países têm relações muito mais intensas entre si. Culturalmente, a Espanha sempre teve grande dinamismo interno e um peso histórico muito maior do que Portugal, que sempre viveu à margem, inclusive na Europa. Além disso a Espanha teve de se defrontar na chegada à América com duas civilizações poderosas, muito estruturadas. Derrotá-las militarmente foi relativamente fácil, ainda que muito sangue tenha corrido, mas culturalmente teve de haver um diálogo, uma verdadeira adaptação dos próprios espanhóis. Portugal limitou-se a fazer missões, que eram coberturas ideológicas de uma aventura mais ampla, não permitindo uma unicidade cultural, não houve entrelaçamento. O Brasil se diferencia do que era Portugal e sobretudo no final do século 19 e início deste, com grandes migrações de povos que não tinham nada a ver com Portugal, que ficou para trás, perdeu o pé.
Folha - A CPLP seria então uma criação artificial?
Lourenço - Trata-se mais de retórica. Desde o início do século, os brasileiros deixaram de precisar de Portugal como massa migratória. Então a coisa começa a funcionar apenas em termos retóricos, essa coisa de país irmão etc. Temeroso de uma suposta dissolução diante da europeização forçada a que estamos submetidos agora, surge uma reação de tipo nacionalista, e Portugal descobre de repente que nossa respiração passa pela língua e portanto passaria por onde essa língua vive. Imaginam que isso é mais fácil do que é na realidade.
Mais uma vez os portugueses poderão estar fugindo de si mesmos para estarem salvos em outra parte. Mas o Brasil tem uma autonomia de interesses e funcionamento, já vive em um outro quadro, no qual Portugal pode participar, mas como apêndice.
Folha - O sr. sempre teve atuação política, seja contra o salazarismo, seja com uma posição crítica face aos governos posteriores a 1974. Após a queda do muro de Berlim e o que isso simboliza, há algo em gestação que substitua a idéia do socialismo como utopia?
Lourenço - Persistem as veleidades da Europa de ser uma espécie de farol do mundo. Mas, tendo ruído do dia para a noite a sua forma máxima de utopia, criou-se um desconforto total e de um mal-estar teórico absoluto. Há um obscurecimento ideológico completo. Está tudo presente virtualmente, mas não há nenhuma opção que suscite quer paixão quer unanimidade. A Europa se constrói hoje pragmaticamente, está americanizada. A única coisa que persiste com muita força é a idéia da preservação da democracia.
Folha - Esse pragmatismo europeu não terá de ceder lugar a mudança mais decisivas?
Lourenço - Com a chamada globalização, não se pode imaginar um país adotando alguma opção própria e condicionando os demais. A Europa funciona hoje a duas velocidades. Aquilo que se pensava, de que a história estivesse eliminando a sociedade de classes, não aconteceu. Mas o que se dá hoje não é nos mesmos termos do século 19. É mais curioso. Não é classe contra classe, e sim como que duas sociedades, divididas não por motivos ideológicos, mas simplesmente porque uma está empregada e a outra não está. É um desemprego vertical que atinge tanto a classe dirigente quanto a dirigida. Em certo sentido, a situação do desempregado é pior do que a do proletário do século passado, que ainda tinha alguma esperança de futuro. De três anos para cá há impotência total da Europa de resolver esse problema inédito. Custa-me imaginar que ao fim de tantos anos, tanta luta, de tanto saber acumulado se chegue a um impasse teórico e social como este. É uma crise muito profunda...
Folha - Falar em crise é sinalizar que, apesar das dificuldades, pode haver uma saída, não?
Lourenço - É por isso que aposto na Europa. Mas o problema é que ela, enquanto protagonista da história, é apenas uma virtualidade. Tem vontade de existir, mas ainda não existe como sujeito político. Não conseguiu resolver, por exemplo, uma questão banal como a da Bósnia, precisando apelar a que os EUA, direta ou indiretamente, interviessem. Ou essa Europa se faz, ou então o mundo adquirirá uma situação semelhante ao do século 19 ou até do século 18, com nações separadas, embora afins, jogando o jogo genérico de uma espécie de liberalismo universal. E a Europa desaparecerá como protagonista na história.
Folha - Como o sr. relaciona a chamada alta literatura com a literatura de entretenimento?
Lourenço - O discurso crítico tornou-se hoje em dia muito demagógico, de maneira a apagar integralmente essa diferença. Não sabemos porque certas obras adquirem um consenso que as leva a serem marcos, clássicos, mas o fato é que herdamos um código de eleição criado basicamente pelo Renascimento. Na Idade Média, não havia critérios, não interessava distinguir as obras, estas eram importantes por outras razões, não por razões propriamente literárias. O acesso das massas às obras aumentou e surgiu um tipo de literatura de mais fácil entendimento. Não sei se é a obra que escolhe o referencial que lhe confere essa dignidade de obra superior ou se é uma classe particularmente exigente, elitista, que faz escolhas e determina que esta e não aquela seja de fato uma obra de arte.
É verdade que sempre houve um pouco essa distinção, mesmo na época clássica. A "Eneida" não é a mesma coisa que uma obra pequenina que o próprio Virgílio poderia fazer. Mas agora é muito mais complicado, a confusão é absoluta. Os critérios são voluntarísticos, de golpe de Estado. Tendo desaparecido os critérios tradicionais da ordem estética, prevalece o fenômeno da moda, que afeta radicalmente a apreciação de tudo. Não há ninguém que esteja em situação de poder julgar a totalidade da criação de uma época, nem sequer de um período. Mas hoje não há nem sequer comparação possível, e criticar é comparar, julgar. Cada um pode ter seus gostos, suas referências, mas me parece que é impossível aceitar, nesta ordem, que não haja diferença entre uma obra importante e outra não.
Folha - Pode-se errar na escolha.
Lourenço - Isso pode acontecer na nossa própria vida. Uma obra que num determinado momento nos fascinou pode depois não ter tanta importância, por uma série de razões. O que aconteceu também é que nessa chamada produção de massa, e sobretudo em certas formas que eram consideradas de "divertissement", como o romance policial, surgiram verdadeiras obras-primas, nas quais há uma apreciação de uma certa maneira de ser da humanidade, obras que dão referência de valores ou não-valores. Ocorre em certos livros de Dashiel Hammet ou Raymond Chandler, por exemplo. Evidentemente, Chandler não é Dostoievski, nem existiria, provavelmente, sem ele. Mas é um tipo de Dostoievski que se faz por meio de obras mais limitadas, sem pretensões de ordem transcendente, mas que pertencem à literatura.
Folha - É possível à crítica ascender ao patamar de obra de arte?
Lourenço - Quando lemos grandes críticos, que nos revelam de maneira mais ou menos genial aspectos de uma obra que já tínhamos lido e cujo alcance não havíamos compreendido, estamos diante de um trabalho que pode ser considerado semelhante ao do criador, idêntico até. Há ali um grande investimento da imaginação, da inteligência etc. As obras de Paul Valéry em relação à poesia são verdadeiras obras de arte. Já no século 19, mas principalmente neste século, a própria criação integrou fortemente uma componente de crítica. Todos os grandes criadores modernos integram no texto a sua própria poética. Se bem lidos, percebe-se que são eles os seus maiores críticos. Lemos Flaubert e percebemos que é muito difícil ultrapassar a acuidade e a profundidade do olhar que ele mesmo dirige sobre o que escreve. O crítico é uma espécie de criador malogrado, mas é de todo modo um criador em potencial e pode inclusive passar de uma coisa a outra. Certas críticas de Roland Barthes são obras literárias. O mesmo se pode dizer de Umberto Eco.
Folha - Portugal teve no início do século vários movimentos literários. Existe hoje algo parecido?
Lourenço - A partir de meados dos anos 80, aparece uma nova sensibilidade, um novo discurso, no qual o ideológico desaparece. Pode-se chamar isso de pós-modernismo, não sei, esse rótulo serve para tudo e ao mesmo tempo não serve para nada, mas o fato é que essa geração tem outro comportamento. Não é como antes, em que um grupo se concentrava em um ou dois indivíduos, é algo mais amplo e que se manifesta sobretudo na música.
Folha - O sr. está falando de música popular?
Lourenço - Sim. O rap, por exemplo. Se algo como o rap surgisse, por exemplo, na ordem literária, estaríamos diante de um novo movimento. Há sintomas. Por exemplo, o feminismo já praticamente esgotou a sua função. Hoje em dia, muitos dos importantes escritores de Portugal já são mulheres. Nas novas gerações esse embate deixa de existir. Há uma literatura de ficção unissex.
Folha - Esta geração está atomizada. Não é orgânica.
Lourenço - Mas há autores típicos dessa espécie de desarrumação, de desierarquização da criação. Miguel Esteves Cardoso, por exemplo, não tem uma obra criativa que lhe garanta um lugar, mas assinala uma ruptura de tonalidade, uma ruptura com regras tácitas de escrita. Deslocou certa função de seriedade para um lugar de ludismo, provocação.
Folha - Em um artigo o sr. cita Woody Allen, que diz que "os momentos mais intensos que já conheci devo-os ao cinema". E os seus momentos mais intensos, ao que o sr. deve?
Lourenço - São da mesma natureza. A fruição estética é sempre da mesma natureza. É sempre uma experiência de vertigem. Tudo o que sabemos ou pensamos saber fica ultrapassado por uma espécie de luz que de repente funde tudo isso num flash que toma conta de nós. Se eu tivesse mais educação musical, provavelmente sentiria isso com mais intensidade na música. Há alguns dias ouvi "Tristão e Isolda", de Wagner. É uma coisa que me dissolve completamente. A pura genialidade. Penetra na gente por um tempo que não é apenas o seu tempo empírico, mas o tempo do não-tempo, uma espécie de experiência da eternidade. A poesia dá a mesma coisa, embora possamos interferir na sua compreensão, pelas palavras.
Folha - E o cinema?
Lourenço - O cinema é a experiência de um cotidiano sublime, de um sublime banalizado. Woody Allen possibilita isso, é um espécime típico de uma tribo intelectual universal que brinca com seus próprios limites e fantasmas. Esses grandes momentos expressam aquilo que é para mim o sentimento mais profundo e duradouro da vida e das coisas, ou seja, a essência trágica da nossa existência. E o que é maravilhoso é que a tragédia é ao mesmo tempo dada e ultrapassada pela forma. Nesses grandes momentos, produzimos simultaneamente lágrimas irreais e reais. Basta ver os grandes momentos sublimes do cômico, que me parece de toda a criação humana a mais difícil de atingir -mais do que o trágico, que já pertence à natureza das coisas. Os momentos de total libertação da condição humana proporcionados pelo cômico são o máximo.
Folha - Em 86, o sr. escreveu que "está cada vez mais difícil ser um ser humano". Piorou?
Lourenço - Com certeza. Temos um paradigma de humanidade que funcionou séculos, uma certa ética, regras, objetivos, metas de conhecimento e de ação. Fica cada vez mais difícil atingir isso. A humanidade está em competição infinitamente acelerada com ela mesma. Alguém atinge o clímax procurado e logo se vê ultrapassado, sentindo-se então diminuído, e é assim com cada um de nós, em diversos níveis. A razão disso é que em poucos anos passamos de uma existência ainda muito ligada à natureza para uma coisa inteiramente artificial, vivemos cada vez mais a virtualidade. Consumimos coisas que nem sequer existem. Há confusão entre o virtual e o real. Mas a humanidade consegue superar tudo, não é? Os homens partem para conquistar certas coisas, mas, ao mesmo tempo, sentem necessidade de se voltar a uma espécie de origem, de olhar para uma flor, para uma árvore. Uma coisa não se opõe à outra, mas a necessidade de se voltar a isso é cada vez mais profunda. A ecologia é uma tradução banal, a ideologia dessa necessidade, mas o problema é mais profundo. Quanto mais o homem sente que está passando para uma outra coisa qualquer ainda sem nome, a se transformar num robô humano, mais necessidade tem de voltar a um paraíso cada vez mais perdido.

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