São Paulo, sábado, 17 de agosto de 1996
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Lei dos pobres ou pobre lei?

RUBENS RICUPERO

É um sinal dos tempos que seja Clinton e não Reagan a assinar a certidão de óbito da política social construída pelo Partido Democrata ao longo de mais de meio século.
Sob a sombra das Olimpíadas, o presidente norte-americano se resignou, com efeito, a sancionar a terceira versão de uma lei recentemente vetada duas vezes e que põe fim a um capítulo da história dos Estados Unidos e do Ocidente.
A nova lei modifica ou repele alguns princípios centrais do "Social Security Act" de 1935, base do Estado de bem-estar iniciado pelo "New Deal" de Franklin Roosevelt e levado às culminâncias pela "Great Society" de Lyndon Johnson.
A "revolução conservadora" se afirma como o novo poder hegemônico, que toma o lugar da velha aliança, forjada por Roosevelt nos dias da Depressão, entre os trabalhadores industriais, espinha dorsal da classe média americana, e as minorias.
Estas últimas, especialmente os negros e hispânicos, moradores dos centros decadentes das grandes cidades, são cada vez mais percebidas como os beneficiários exclusivos de uma legislação financiada pelos habitantes dos subúrbios residenciais.
Daí o aparecimento de uma "política de ressentimento", que explica por que se tornou praticamente impossível para qualquer candidato presidencial democrata obter a maioria do voto branco.
Daí também o abandono do partido por setores como as comunidades de origem irlandesa ou italiana do Nordeste e dos brancos do Sul, seus tradicionais sustentáculos no passado.
Nada disso justificaria ignorar a existência de um quase-consenso acerca das distorções que se foram acumulando na evolução do sistema de proteção social e da necessidade de eliminá-los. O que se discutia não era fazer ou não a reforma, mas o seu conteúdo e as suas consequências.
A crítica principal era ao princípio de uma ajuda financeira do governo aos mais carentes, sem limite de tempo e sem contrapartida de trabalho.
Essa garantia ilimitada e incondicional teria engendrado uma mentalidade de acomodação e resignação, uma espécie de "cultura da pobreza". Que estímulo haveria, de fato, em buscar um emprego se o salário seria provavelmente inferior aos benefícios sociais?
Contra essa visão, argumentavam outros que a "cultura da pobreza" não era o efeito da legislação, mas de uma economia que vem acentuando a desigualdade, com salários cada vez mais baixos para trabalhadores não-qualificados, sem a compensação de programas de retreinamento e educação.
Encontrava-me por acaso em Nova York, em fins de setembro de 1995, por ocasião da aprovação da primeira versão da reforma.
Fiquei muito impressionado com o discurso em que o senador Moynihan, professor de sociologia, grande especialista em temas sociais e provavelmente a melhor cabeça do Senado, advertia que a aprovação da lei cobriria de vergonha o Congresso e arruinaria a "revolução conservadora".
Dizia ele que, se a palavra "conservador" significa alguma coisa, seu sentido é de cuidadoso, refletido, que antecipa o imprevisto.
Sobretudo, quer dizer sensível em relação às vidas das crianças, filhos de mães solteiras e abandonadas, que, juntamente com os imigrantes legais ou não, ameaçam tornar-se as grandes vítimas de uma lei que poupa os grupos de peso eleitoral como os idosos.
O mais impressionante no discurso de Moynihan era o sentimento de perplexidade e abandono com que exclamava: "Nenhum presidente na história ou em 60 anos de história, republicano ou democrata, sonharia em aceitar a revogação do 'Título 4.A - da Segurança Social', as cláusulas relativas a medidas governamentais em favor das crianças... Não posso compreender como isso possa estar acontecendo. Nunca aconteceu antes".
O tema transcende a atualidade política americana e afeta não só as sociedades industrializadas, mas países como o Brasil, onde somos também confrontados com a questão da sustentabilidade e limites da seguridade social.
Pretendo, assim, continuar a discuti-lo. Por ora, contudo, e apenas para realçar o caráter de sinal dos tempos dessa reviravolta histórica das velhas maiorias, concluo com a passagem patética na qual o senador se queixa da ausência dos grupos de pressão que antes defendiam os pobres e vulneráveis: "Daqui de onde estou, de pé, pode-se olhar direito até a Corte Suprema -nenhuma pessoa entre mim e essa vista. Nenhum dos grupos ostentatórios e jactanciosos sempre prontos a proteger os interesses das crianças, dos desamparados, dos sem-abrigo (...). Eles deveriam estar envergonhados. A história os cobrirá de vergonha".

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