São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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O reino habitado pelo descontentamento

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tenho Portugal inteiro à minha conta, calcula-me a responsabilidade -diz um dos personagens de "A Ordem Natural das Coisas" (1992), lançado em edição brasileira. António Lobo Antunes, o autor do romance, um médico psiquiatra nascido em 1942, é uma das boas revelações da literatura portuguesa contemporânea.
Seu livro é um mosaico de monólogos, ou quase solilóquios, proferidos por diferentes personagens para diferentes interlocutores. No tom solene e melancólico das confissões, cada personagem rememora um episódio de sua vida que tem a ver com o passado político e com os destinos de Portugal.
Os narradores, aparentemente isolados uns dos outros, falam quase que para si mesmos, sem objetivo de comunicação com outrem. Assim é que o personagem do marido, Alfredo, narra sua infância e sua juventude sempre de noite, para a mulher, Iolanda, adormecida a seu lado na cama.
O caminho estilístico de Antunes é este: estabelecer o intercâmbio entre monólogos paralelos. Os personagens não dialogam, mas estão, sem saber, um dentro do discurso e do destino do outro -intercruzamento por meio do qual se constrói o fio da história; demonstração de que a ordem natural das coisas (inclusive esteticamente) só se adquire por meio do que parece ser uma grande confusão. Em termos linguísticos, o resultado é uma mensagem cuja principal preocupação não é comunicar, mas pedir para ser compreendida, ou verificar se está sendo compreendida. São falas inteiras com o único objetivo de prolongar e encontrar no interlocutor o eco para a mesma queixa: a queixa contra Portugal e o destino.
Em termos de enredo e conteúdo, a impressão que se tem é de se estar às vezes num confessionário, às vezes num asilo de doidivanas e doentes a remoer desgraças e insatisfações. Todos os personagens têm uma queixa contra Portugal, contra a ditadura salazarista (Jorge, Fernando, as irmãs), contra a democracia que o deixou desempregado (o ex-policial); contra Moçambique e a África negra (sr. Oliveira, o pai de Iolanda, que prefere a África do Sul); contra Lisboa, o Tejo, e até o mar (vários).
"Acabara eu de me decidir a embarcar de volta para Joanesburgo porque não gosto de Portugal, não gosto de Lisboa, não gosto da Quinta do Jacinto", diz o pai, enquanto, do outro lado, o Tejo é um pesadelo na vida do ex-policial, de Oliveira e de Alfredo.
O ex-policial é categórico: "O mal de Lisboa, amigo escritor, consiste em tropeçarmos no Tejo em cada bairro da cidade como se tropeça num objeto esquecido, o Tejo que nos aparece em todos os postigos, que nos balouça a cama, durante o sono, com seu vaivém de berço, o Tejo e as suas luzes noturnas, que me magoavam os olhos quando (...) saía a prender comunistas de madrugada".
Os personagens de António Lobo Antunes são homens deslocados, incapazes de enxergar na realidade uma solução. Vários procuram saídas para suas insatisfações no sobrenatural, no Valium, no hipnotismo ou na magia. A maioria é doente -de câncer, diabetes, das vesículas ou dos rins.
Seriam vítimas, todos eles, da tragédia do sebastianismo português, tema recorrente na literatura daquele país em todas as épocas: "A esperança num milagre salvador (que não veio, afinal...); a desesperança nas próprias forças, na própria habilidade e na própria razão; a convicção de que problemas não se resolvem por meios humanos e lógicos; de que não há uma razão dentro das coisas, mas unicamente acasos, milagres".
A obra flagra um momento de crise no sentimento de unidade e multiplicidade simultâneas do ser português ou na crença na missão providencial dos portugueses, como diria o historiador e crítico Antonio José Saraiva.
"Trata-se da noção da sequência e causalidade históricas; da pequena influência do indivíduo contingente (...) na tessitura dos acontecimentos; da interdependência entre certas condições históricas e certos resultados." E de como essa noção aparece associada, ainda, a uma crença na missão providencial dos portugueses.
António Lobo Antunes também escreveu, entre outros, "Memória de Elefante" (1979), "Explicações dos Pássaros" (1981) e "Tratado das Paixões da Alma" (1990).

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