São Paulo, terça-feira, 20 de agosto de 1996 |
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Da decadência dos Correios ao extravio de Vera
MARILENE FELINTO
Mas a carta chorava tanto que era comovente: Ariquemes, por não ter recebido a resposta ao pedido, já não quer se casar com Vera, que vem vivendo o inferno dos injustiçados pelo acaso, experimentando o deserto dos que achavam que eram amados. Vera, empregada doméstica em São Paulo, conheceu Ariquemes na cidade grande. Apaixonaram-se. Ele voltou para o Norte e fez o pedido de casamento por carta. Só quatro meses depois ela soube que sua resposta -segundo os Correios- extraviou-se, por uma "falha operacional". Ariquemes não se convenceu. "Ele disse que não aguentou esperar tanto, que ficou até um buraco dentro dele". Inconsolável, Vera me pediu que denunciasse seu caso (por sugestão da patroa, "que lê todo dia sua parte que sai no jornal"). Suportei a insuportável emotividade das cartas de amor (Vera me mandou uma cópia da carta do "sim" a Ariquemes). Quebrei a resistência a responder cartas de leitores. Na teoria, como eu lia Fernando Pessoa, quis mandar para Vera poemas de ceticismo e desconfiança na natureza amorosa do ser humano. "Grandes são os desertos, e tudo é deserto", Vera, "Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes-/ Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,(...)." Na prática, fiz uma rápida pesquisa sobre a decadência dos Correios nos últimos anos. Havia pilhas de reclamações na imprensa, de correspondência violada, extraviada, de telegramas atrasados, sedex que nunca chegou e de pífias indenizações no valor de R$ 139,15. Há tempos os Correios caíram no descrédito do povo, viraram instituição obsoleta, coisa para pobre -para os que, no país imenso, passam meses sem ter como se comunicar com Angustura, os desconectados, os sem telefone, sem celular nem correio eletrônico. Em 1994, por ocasião de uma greve nos Correios, o Tribunal Superior do Trabalho julgou não-essencial esse tipo de serviço, embora a Lei de Greve trate como essencial os serviços de telecomunicações. Na prática, quem vai indenizar o impagável e essencial amor perdido de Vera? Na teoria, ela não sabe que os casamentos também são desertos, que os parceiros são apenas o óasis no deserto ao lado. ("Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!"). Talvez Ariquemes não quisesse Vera tanto assim. Mas ela acha que foi pela falta que ela lhe fez. É comovente. O que dizer, senão: "Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!/Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém.../Sem ti correrá tudo sem ti." E-mailmfelinto@uol.com.br Texto Anterior: Criança participa de roubo a banco em SP Próximo Texto: Feirante confessa tiro em motorista Índice |
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