São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 1996
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Liberdade virou obsessão dos homens

MARIO SERGIO CORTELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No ano passado comemoramos cem anos da morte do grande poeta e ensaísta cubano José Julian Martí, um dos líderes de Cuba na guerra, pela independência, contra a Espanha.
Martí, um cidadão das Américas, disse que "a liberdade é muito cara e é preciso resignarmo-nos a viver ser ela, ou então a pagar-lhe o preço"; ele optou por pagar.
Ainda adolescente, em Havana, foi condenado a seis meses de trabalhos forçados por envolvimento com grupos revolucionários; aos 18 anos foi exilado na Espanha e, sucessivamente, no México, Guatemala, Estados Unidos e Venezuela até que, aos 42 anos, morreu em combate em sua terra natal.
Agora, em 1996, o educador Paulo Freire -o brasileiro com o maior número de títulos de doutor "honoris causa" pelo mundo afora- completa 75 anos (muitos dos quais no exílio, pagando o preço aludido por Martí), em uma vida dedicada à educação como prática da liberdade.
Também neste ano chega a essa idade o cardeal Paulo Evaristo Arns (homem honrado e um corajoso combatente em defesa da cidadania livre), grão-chanceler da PUC/SP (que na data de hoje atinge meio século de uma existência permeada por tentativas frustradas de sequestro de sua liberdade).
O que une esses três homens, e, resguardadas as óbvias diferenças, muitos outros, como Sócrates, Jesus de Nazaré, Giordano Bruno, Frei Caneca, Bakunin, Gandhi, Nelson Mandela etc.? Todos eles, em nome da liberdade, colocaram a própria em sério risco!
Insanidade? Combater os fatos? Insubmissão contra a realidade mais forte? Pode ser.
Desiderius Erasmus (o padre agostiniano conhecido como Erasmo de Roterdã) afirmou, no início do século 16, que "nenhum animal é mais calamitoso do que o homem, pela simples razão de que todos se contentam com os limites da sua natureza, ao passo que apenas o homem se obstina em ultrapassar os limites da sua"; não por acaso, essa sentença se encontra na sua clássica obra "O Elogio da Loucura".
Essa obstinação de que fala Erasmo pode ser traduzida pelo primeiro conceito apreendido por um ser humano: o não!
Apesar da primeira palavra pronunciada por uma criança nas diferentes culturas ser, usualmente, o equivalente a mamã, o conceito primordial é o da negação, que se expressa, por exemplo, no cerrar firmemente a boca ou cuspir o alimento quando de sua rejeição, ou, ainda, o choro convulsivo e o largar o peso do corpo como forma de manifestar recusa.
Pela vida adiante, o ser humano vai consolidando e valorizando sua capacidade de dizer não aos fatos, às pessoas e às relações. É claro que por trás da capacidade de negar algumas coisas está inclusa a faculdade de afirma outras; isso é, em suma, o cerne da possibilidade de escolher, de romper limites, de rejeitar situações.
É por isso que filmes como "Queimada", "Papillon", "Fugindo do Inferno", "Um Sonho de Liberdade", "Furyo" etc., exercem tanta atração sobre nós e, pela mesma razão, nos horrorizam as ditaduras políticas e pessoais, os campos de concentração, a miséria, o apartheid de qualquer tipo e os sequestros.
A literatura, a poesia, a música também estão impregnadas de odes simbólicas à liberdade, desde o caetaneante "Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento" até os fortes versos de "Pesadelo", de Maurício Tapajós e P.C. Pinheiro, quando cantam "Você corta um verso, eu escrevo outro, você me prende vivo, eu escapo morto"...
Não é à toa que o mesmo Sartre da frase "O inferno são os outros" escreve em "O Existencialismo" é um humanismo que "o importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele"...

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