São Paulo, quinta-feira, 29 de agosto de 1996
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'Tieta' tem a ginga contra a pós-utopia

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O barroco não tem centro, não tem caroço. Como o Brasil.
O que o barroco tem? Tem graças como ninguém... Tem a volúpia, a abundância, o erotismo, o prazer do diálogo natural dos corpos...
O que "Tieta" tem? Está mais onde não está. Mais além da narrativa clássica, suporte exigido pela indústria, vão se infiltrando no filme uns remansos de águas paradas, umas sombras, uns refrescos de brasilidade que talvez sejam mais importantes que a trama.
Ali estão os rostos coloridos dos casarios, os anjos reais e imaginários, crianças e adultos de asas, os cumes de igrejas iluminadas, os presépios ingênuos, o papel crepom, os azuis, amarelos, vermelhos, as bebidas, as comidas, as paisagens, os tipos humanos doces e cômicos, os ternos habitantes de nosso interior (e não falo do interior "geográfico", mas da galeria de gente que nos forma a cabeça).
Tieta, a personagem, foi embora e volta como um mistério. Tieta não é "a favor" da vida moderna, como uma leitura superficial "ecológica". Tinha ido embora para salvar sua liberdade, para salvar seu direito ao sexo, expulsa pelo pai terrível, quando menina. Tieta não volta para se vingar.
Não é nem uma "velha senhora" de Drrenmatt, nem uma "Anna Christie" de O'Neill. Tieta de Amado volta barrocamente trazendo um tabuleiro de presentes e generosidade, trazendo a Bahia farta e luminosa que tinha levado.
Tieta mostra que nos salvar é voltar ao passado. Salvar-nos hoje é isso, voltar ao Brasil sem medo, depois de conhecer o mundo.
O filme de Cacá Diegues faz exatamente isso: volta. Voltamos depois do sarampão pós-estatal do cinema, quando, abandonados por todos, só pensávamos em emigrar, fugir, quando íamos como Tieta nos prostituir no exterior para não sermos maltratados aqui.
Estamos de volta à cidade imaginária de Jorge Amado, este antropólogo lírico que reuniu em sua obra mais riquezas de um país do que livrarias inteiras de estudos secos. Carlos Diegues traz para habitar essa cidade uma população de mitos preciosos da cultura brasileira, num claro impulso de uma doce "contra-reforma", contra essa tentativa de ver nossas fachadas toscas azuis e rosas apenas como desenhos de um atraso.
Ou então nos ver apenas como um "mercado emergente". Nosso atraso é também nossa salvação. Isso faz a grandeza deste filme de recomeço. Tieta é um filme mestiço, como toda obra de Cacá, feita da carnavalização crítica do país, do elogio ao negro e ao prazer, de "Xica da Silva" alforriada ao "Bye Bye Brasil", oscilando entre o grande espetáculo e os clipes profundos da poética do precário de "Veja Esta Canção".
Em "Tieta", ele representa nossa cultura, com seu cortejo de anjos. Surge Sônia Braga voltando dos EUA, com sua alma de nitrato de prata, que impregna o filme com o brilho que poucas estrelas tiveram, como Marilyn; surge a imensa e inteligentíssima Marília Pêra, com sua interpretação crítica, sempre produzindo teoria; vem Cláudia Abreu, moderna e minimalista, mas de emoção prestes a explodir; Chico Anysio, gênio sem maquiagem, sintetizando mil tipos vivos que encarnou; André Valle, Zezé Motta, Jece Valadão, atores tão míticos e emblemáticos que se misturam às personagens e não se sabe mais quem é quem.
Quem é Perpétua, quem é Marília? Tudo sob a luz da Bahia, sob a luz de Edgar Moura, e sob a música de Caetano, que consegue o mistério de ser barroco e rigoroso.
Na época em que nos achávamos "profundos", nos recusávamos a mostrar as belezas brasileiras. Só as "contradições", palavra mágica do bode. Os reacionários reclamavam: "Vocês só mostram as favelas... Tanta coisa bonita aí..."
Agora podemos mostrar a curva doce de nossas mulheres e colinas, agora as dunas ondulantes podem se somar aos seios de Tieta, porque já sabemos que tudo isso é o que somos... Um país de excessos, redondo, que vai burlar a loucura de um mundo frio.
Se a cultura de massas americana escolheu a violência, nós escolhemos o sexo. Como disse o antropólogo americano Mathew Shirts, "só o Brasil tem a ginga para escapar da pós-utopia".

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