São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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Um incoerente fim do mundo

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os primeiros cristãos foram judeus apocalípticos, que aguardavam o retorno de Jesus e o fim dos tempos, ainda no curso de suas próprias vidas. "Apokalypsis", em grego, significa "desvendar", ou "revelar". O arquétipo de todos os textos apocalípticos -incluindo o Apocalipse cristão, conhecido em inglês como "Revelação" de São João -é o Livro de Daniel, composto durante a rebelião dos macabeus contra a Síria (cerca de 175 a.C.).
Segundo a tradição cristã, foi João de Patmo -exilado nessa ilha do mar Egeu, por ordem do imperador Domício- quem escreveu não só o quarto Evangelho, mas também o Apocalipse. Uma leitura cuidadosa dos dois, porém, na língua original, torna essa hipótese altamente improvável. O Evangelho de São João, infelizmente para um crítico judeu, como eu, é uma obra literária poderosa; já o Apocalipse deixa muito a desejar, com seu autor canhestramente forçando a sintaxe aramaica no vocabulário grego. Nenhuma outra parte do Novo Testamento ganha tanto em tradução.
O gênero explícito do Apocalipse é a epístola paulina, mas os verdadeiros modelos de João de Patmo foram os autores dos Livros de Daniel, Ezequiel e Zacarias. O Apocalipse é um quebra-cabeça, em que quase todas as peças foram extraídas de seu contexto original, nesses três livros da Bíblia hebraica. Isto explica, aliás, o distanciamento estranho do Apocalipse com relação ao resto do Novo Testamento. Os textos precursores de João de Patmo foram escritos em hebraico e aramaico, não em grego. Mas os livros de Daniel e dos profetas não podem jamais servir de contexto para o Apocalipse, que está longe de ser tão coerente e saudável quanto as obras que lhe serviram de inspiração.
A influência do Apocalipse não poderia ser mais desproporcional à sua força literária e valor espiritual. Charlatães e lunáticos de todas as eras, até o dia de hoje, respondem ao seu encantamento; mas também os maiores poetas, de Dante e Spenser a Milton, Blake e Shelley. Na tradição da literatura ocidental, obras do gênero apocalíptico retomam sempre o Apocalipse de João, e não Daniel ou Zacarias. De Herman Melville a Thomas Pynchon, os visionários americanos escrevem à sombra do Apocalipse, e todo estudante de poesia inglesa ou ficção americana precisa fazer algum sentido dessa rapsódia insólita, atribuída a João de Patmo.
Ao que parece, é a Epístola aos Hebreus que paira na consciência de João, como modelo de interpretação para a leitura da Bíblia hebraica, ou melhor, não tanto a Bíblia hebraica, ou sua paráfrase aramaica, mas aquela obra curiosa, até hoje chamada de "Velho" Testamento pelos cristãos. A Bíblia hebraica termina com o Segundo Livro das Crônicas e seu grande mandado para a reconstrução de Jerusalém: "IHVH, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe edificar uma casa em Jerusalém de Judá. Quem entre vós é do seu povo, seja com ele IHVH, e suba". Mas o Velho Testamento conclui com o profeta tardio Malaquias, cujo Deus exorta os corações de pais e filhos a se voltarem uns aos outros, "para que eu não venha e castigue a terra com maldição".
O Novo Testamento esforça-se para atender a essa exortação pela "tipologia", na qual cada passagem mais importante do Velho Testamento é supostamente "completada" por uma passagem do Novo. A tipologia é vista, com frequência, pelos estudiosos, como algo de benéfico, ou então meramente técnico, mas é o exemplo mais rematado do exercício da vontade de potência sobre um texto. A pergunta de Nietzsche é particularmente relevante para cada autor do Novo Testamento: "Quem é o intérprete, e que força espera exercer sobre o texto?".
Nessa versão, a Bíblia hebraica torna-se uma gigantesca "figura", ou "tipo", um mero presságio, que atinge sua forma plena no Novo Testamento. Mas nenhum texto "completa" outro, e especialmente não quando o primeiro é o mais forte dos dois. O poeta Dante é tão forte que chega a nos persuadir de que o seu Virgílio é a realização acabada do verdadeiro Virgílio, que é só uma figura; mas João de Patmo é um poeta fraco, embora histérico, e seu Daniel, seu Ezequiel e seu Zacarias são meras caricaturas dos textos proféticos propriamente ditos.
Uma vez que nenhum texto completa outro, mas tão-somente pode revisá-lo, a questão das relações entre o Apocalipse e seus precursores torna-se a pergunta tripla que é a marca de todo o texto na tradição do sublime: igual, maior, ou menor? E todo bom leitor, livre de crenças extraliterárias, não terá dificuldade em medir as imagens do Apocalipse, comparadas às de seus antecessores proféticos.
Desumano e sinistro, sua influência tem sido perniciosa, embora inescapável. Northrop Frye o descreve como um "pesadelo de angústia e de triunfo", mas é de se perguntar se uma passagem como a seguinte é mesmo uma angústia ou um triunfo literários:
"Veio um dos sete anjos que tinham as sete taças e falou comigo: Vem cá, e mostrar-te-ei a sentença da grande prostituta, que está sentada sobre muitas águas. Com ela fornicaram os reis da terra, e os habitantes da terra foram embriagados com o vinho de sua fornicação. (...) Vi uma mulher sentada sobre uma fera cor de escarlate, cheia de nomes de blasfêmia, que tinha sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida de púrpura e escarlate, e adornada de ouro, de pedras preciosas e pérolas, tendo na mão um cálice de ouro, cheio de abominações e imundícies da sua fornicação. Na sua testa estava escrito um nome: MISTÉRIO, A GRANDE BABILÔNIA, A MÃE DAS PROSTITUTAS E DAS ABOMINAÇÕES DA TERRA. Vi a mulher embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. E quando a vi, fiquei espantado, com grande admiração" (Apocalipse 17: 1-6.).
Não posso ler essa passagem sem recordar as censuras da grande sensibilidade protestante de D. H. Lawrence: "O Apocalipse não idolatra a força. Quer assassinar os fortes, para capturar a força sozinha, que é fraca". O sacerdote pálido e ascético de Nietzsche, exalando ressentimento, não poderia encontrar outro exemplo melhor do que João de Patmo. Ressentimento, não amor, é o que nos ensina o Apocalipse de São João. É um livro sem sabedoria, sem bondade, sem delicadeza ou afeto de qualquer espécie.
Não é inapropriado, talvez, que a celebração do fim do mundo venha em tons de barbárie, sem quase nada de literário. Com uma substância tão desumana, quem poderia desejar uma retórica mais convincente, ou uma visão mais viva?

Tradução de Arthur Nestrovski.

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