São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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Memórias deterioradas

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando os paulistas passam por Cubatão pela rodovia Piaçaguera-Guarujá, em alta velocidade, a caminho do litoral do Estado, vão com as janelas fechadas. Não suspeitam que, além das poluentes indústrias químicas e dos pântanos contaminados, estão passando também diante de um pedaço esquecido da história dos judeus no Brasil. Num cemitério abandonado, bem à frente da refinaria da Petrobrás, estão as lápides e os corpos de cerca de 60 mulheres e 14 homens judeus.
A natureza e a poluição aliam-se no paciente trabalho de aniquilação da memória guardada por estas pedras erigidas entre as décadas de 30 e 50. A chuva ácida as corrói; a vegetação tropical, adaptada à atmosfera nociva, já cobriu ou destruiu muitas delas. A maior parte dos nomes gravados nas lápides tornou-se ilegível.
Os habitantes da região acreditam que o lugar é mal-assombrado, frequentado por espíritos. Em meio às tumbas, muitas ainda adornadas com retratos impressos em porcelana, pode-se encontrar "trabalhos" de macumba.
Quem foram estes homens e mulheres esquecidos?
O tráfico de brancas
O tráfico de brancas tornou-se um assunto importante na agenda judaica internacional no final do século passado. Em 1885 foi fundada em Londres a Jewish Ladies' Society for Preventive and Rescue Work (Sociedade de Senhoras Judias para Trabalhos de Prevenção e Resgate), cujo objetivo era combater a prostituição e o tráfico de mulheres judias. Sua primeira presidente foi a baronesa Constance Rothschild.
As primeiras 67 prostitutas judias de nacionalidade polonesa desembarcaram no Rio em 1867. Logo foram apelidadas de polacas. A estas seguiram-se centenas, que, no decorrer das cinco ou seis décadas subsequentes, estabeleceram-se no Rio, em Santos e em São Paulo.
Deixaram suas marcas no folclore. A melodia "Judia Rara", do sambista Moreira da Silva, foi dedicada a sua amante, a alcoviteira Esthera Lado Konez. Seu refrão diz "Ich bin mishiguene far dir" (que em iídiche significa "Sou louca por você"). Consta que a origem da palavra encrenca é uma corruptela do iídiche "ein krenke" (um doente), sussurrado entre as prostitutas quando suspeitavam que um cliente estivesse com doença venérea.
A maior parte destas mulheres foi forçada a se prostituir pela Zwi Migdal, uma organização criminosa baseada em Varsóvia, que operou até a década de 30. Seus agentes viajavam pelas empobrecidas aldeias judaicas da Europa Oriental, afirmando serem comerciantes bem estabelecidos na América do Sul, em busca de casamento. Frequentemente eram amparados por casamenteiras e celebravam casamentos religiosos antes de partirem com suas "mulheres" para o novo mundo.
Estas, ao embarcarem nos vapores, muitas vezes encontravam outras "mulheres" do mesmo marido. Uma vez no Brasil (ou na Argentina, onde a organização teve atividade mais intensa), tendo perdido sua virgindade, não conhecendo o idioma local e nem possuindo qualquer habilitação profissional, seu destino estava selado. As autoridades locais eram complacentes com a organização, em função de "caixinhas".
Houve algumas poucas que conseguiram escapar, de maneira romântica. Foram salvas por clientes, que com elas se casaram e as tiraram da prostituição. Mas a vasta maioria permaneceu na "profissão" até o fim de seus dias, como prostitutas e mais tarde gerentes ou proprietárias de bordéis.
Tanto as mulheres quanto os traficantes e caftens da Zwi Migdal eram completamente marginalizados pelo restante da sociedade judaica. Tanto assim que nem sequer se permitia que seus mortos fossem sepultados nos mesmos cemitérios que os demais judeus.
Sua entrada nas sinagogas tampouco era permitida. Por outro lado, os caftens estiveram entre os principais patrocinadores do teatro iídiche nas décadas de 10 e 20, especialmente no Rio de Janeiro. As polacas, adornadas com jóias e vestes escandalosas, eram presença frequente nas primeiras filas das estréias de novas produções -ocasião utilizada pelos caftens para exibir suas "mercadorias".
A comunidade judaica local era ainda muito pequena e pouco organizada para poder tomar medidas efetivas contra a Zwi Migdal. Em 1913 a Jewish Association for the Protection of Girls and Women (Associação Judaica para Proteção de Meninas e Mulheres), baseada em Londres, enviou seu secretário-geral, Samuel Cohen, a Buenos Aires para avaliar a situação do tráfico de brancas na América do Sul. Os resultados desta visita foram limitados.
Em 1936 o escritor judeu austríaco Stefan Zweig visitou a zona do mangue, no Rio de Janeiro, onde se concentrava a prostituição. Em seus diários encontra-se a seguinte anotação: "Mulheres judias da Europa Oriental prometem as mais excitantes perversões... que destino levou estas mulheres a terminarem aqui, vendendo-se pelo equivalente a três francos?".
Sociedades benevolentes
A trágica história destas mulheres já foi tema de alguns livros. Em primeiro lugar, o romance "O Ciclo das Águas" (1975), de Moacyr Scliar. Em 1922, a socióloga Esther Largman publicou "Jovens Polacas", estudando o funcionamento da Zwi Migdal.
A historiadora Beatriz Kushnir volta ao tema em um novo livro -"Baile de Máscaras - Mulheres Judias e Prostituição: As Polacas e suas Associações de Ajuda Mútua" (Imago, 274 págs., R$ 28,00). Sua abordagem difere das anteriores à medida que busca compreender como eram a vida e o quotidiano destas mulheres não aos olhos da sociedade mais ampla -como é o caso dos trabalhos anteriores-, mas aos olhos delas mesmas. Para tanto, mergulhou nos livros de atas das sociedades de ajuda mútua fundadas por elas no Rio, em São Paulo e em Santos, colheu depoimentos de ex-funcionários e entrevistou gente que com elas teve contato.
A autora estuda também o tráfico para a Argentina e EUA, onde existiram sociedades semelhantes às brasileiras, bem como as estratégias de combate a este fenômeno adotadas por parte das comunidades judaicas nas Américas e na Europa.
As polacas criaram fundos comunitários para assistência às enfermas e velhas, construíram suas próprias sinagogas, em que celebravam as principais festas judaicas, adquiriram seus próprios cemitérios (o maior, o de Inhaúma, Rio, com mais de 700 túmulos, outro em São Paulo, no bairro de Santana, que tinha mais de 250 túmulos e foi demolido na década de 70, e um menor, o de Cubatão, com cerca de 80 túmulos) e até um asilo de velhos próprio, que funcionou por alguns anos.
Sua sinagoga no Rio, conforme narra a autora, era ricamente decorada e, quando foi fechada por falta de gente que a pudesse manter, na década de 70, seu interior ornado foi disputado por várias instituições judaicas. A este propósito, Beatriz Kushnir cita um depoimento de Rebecca Freedman, última presidente da sociedade benevolente do Rio, chamada Chessed shel Eimess (em hebraico, significa caridade de verdade), pouco tempo antes de sua morte: "Anos atrás eles (os judeus da sociedade mais ampla) nos desprezavam. Agora estão brigando pela nossa sinagoga".
Na sua velhice, Freedman, que morreu aos 103 anos, lutou muito para zelar pelo bem-estar de suas colegas, e para dar a cada uma delas um sepultamento segundo as leis judaicas.
Já na década de 70 a maior parte dos membros da Chessed shel Eimess tinha morrido, de maneira que os fundos da sociedade foram declinando até o ponto em que nada mais podia ser feito. Segundo o sr. O., último contador da sociedade, entrevistado por Kushnir, a última assembléia da sociedade aconteceu em 1970, mas não havia mais dinheiro para coletar. Ficou decidido que voltariam a se reunir quando houvesse dinheiro -nunca mais houve.
As últimas a morrer foram as que mais sofreram, em função da falta de recursos. Algumas tinham filhos e netos, que as ajudaram. Outras -como a amante de Moreira da Silva- cometeram suicídio. Outras, ainda, morreram nas mais abjetas condições, em sanatórios estatais para leprosos ou para doentes mentais.
Em São Paulo talvez as mulheres tenham tido um destino melhor. A sede de sua Sociedade Religiosa e Beneficente Israelita, na rua Almirante Barroso, 49, foi vendida em 1968 e os recursos obtidos pela venda do imóvel bastaram para manter as associadas em um outro asilo de velhos até o fim de suas vidas. Por outro lado seu cemitério em Santana não mais existe. Abandonado, foi desapropriado pela prefeitura em 1971.
A originalidade da abordagem de Beatriz Kushnir encontra-se em sua ótica humana. Deixando de lado a dimensão trágica da história destas vítimas de uma organização criminosa, enfatiza em seu estudo as estratégias de sobrevivência psicológica e material por elas adotadas diante da situação adversa em que viveram e revela o papel crucial de seu apego às suas raízes étnicas e espirituais.
É preciso lembrar que nas décadas de 30 e 40 a situação dos judeus na Europa era dramática. Seis milhões de homens, mulheres e crianças foram vitimados pelo genocídio. Sobreviver, neste universo, não importando como, já era uma grande conquista. Aliás, em seu cemitério de Santana, a Sociedade Religiosa e Beneficente Israelita erigiu um monumento a estes 6 milhões de mártires. As proporções desta tragédia tornam a outra como que irrisória.
Se a situação de vítimas é descartada por Kushnir em sua abordagem, em favor de uma perspectiva mais objetiva do funcionamento do cotidiano destas mulheres, de seus fatores de agregação diante de um mundo hostil, por outro lado a autora tende a não querer levar em consideração este aspecto da história. Faz algumas afirmações no mínimo arriscadas, como por exemplo ao dizer que muitas das polacas tinham sido também prostitutas em seus países de origem, o que não está fundamentado em dados estatísticos confiáveis.
Outra generalização não fundamentada refere-se às primeiras levas de imigrantes judeus para o Brasil, em torno de 1870. A autora passa a impressão de que estes eram todos prostitutas e caftens, o que tampouco é verdade.
Feitas estas ressalvas, o livro de Kushnir tem o mérito de recriar, a partir de alguns vestígios, o universo em que viveram estas mulheres, traçando uma trajetória tão clara quanto é possível deste aspecto oculto e abandonado da história dos judeus no Brasil.

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