São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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O espectro que ronda o capitalismo

JOSÉ CARLOS DE SOUZA BRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A globalização é filha legítima da lógica e da história do capital. A aflição ideológica contudo tem provocado mais calor do que luz sobre o tema. Partimos da hipótese de que para sua compreensão é crucial examiná-la como culminância e paroxismo do fetiche da mercadoria plena que é o capital e, sobretudo, o capital a juros -venha ele da grande empresa industrial, dos bancos, dos donos da terra, ou das poupanças financeiras pessoais. Seu movimento é o centro da globalização financeira que agora preocupa tanto o Fundo Monetário Internacional quanto o G-7, grupo dos sete países mais desenvolvidos.
Indiretamente reconhecem a instabilidade estrutural, intrínseca ao próprio sistema, a necessidade de regulamentar os mercados financeiros globalizados, que os bancos serão o próximo epicentro da crise, que as consequências podem ser catastróficas.
A crer nas intenções manifestas, finalmente, para que surjam providências, talvez não mais seja necessário esperar um colapso como o da década de 30, coisa que os críticos mais angustiados estão a prever, sem "sucesso", há mais de dez anos. A perversidade da instabilidade contemporânea tem sido justamente a de, por mais de 25 anos -desde pelo menos 1971, quando o dólar deixou de ser conversível em ouro-, combinar alta especulação financeira com crescimento mínimo, coisa capaz de evitar o colapso, garantir em geral -com o apoio dos tesouros nacionais e dos bancos centrais- os lucros de todo tipo e arrebentar com a maior parte das periferias sociais e geográficas. É o espectro da globalização: nem colapso, nem desenvolvimento.
A "catástrofe" das últimas décadas já é visível. É a estagnação econômica relativa nos países avançados, desde os anos 70 em comparação com os "dourados" anos 50 e 60. É o declínio relativo da força monetária, industrial, comercial e fiscal da potência ainda hegemônica -os Estados Unidos- cujos assalariados empobreceram e deserdados se sentem do "sonho americano". É o desemprego estrutural da Europa e a difícil realidade de sua União. É a tendência à "desorganização" nos anos 90, em meio à recessão pós-especulação, no, anteriormente, capitalismo organizado do Japão. É a mercantilização desorganizada e selvagem da Rússia. É a desindustrialização da América Latina coetânea da estabilização a qualquer preço, baseada em âncoras artificiais, sobretudo a cambial. É a África dos conflitos tribais, indesejável aos investidores que, nesse caso, abdicam de qualquer "missão civilizatória". É, enfim, uma economia fetichizada em que a circulação monetário-financeira ampliada em vertiginosa espiral guarda tênue correspondência com os fundamentos econômicos esmaecidos do investimento produtivo, da renda (lucros operacionais e salários), do emprego, da infra-estrutura econômica e social. É a falência fiscal dos Estados nacionais cujas dívidas não param de crescer porque estão financeirizadas, uma vez que seus títulos públicos alimentam o capital a juros globalizado.
Descartemos a leitura liberal pela qual a globalização é a sinfonia do equilíbrio geral dos mercados transposto o Estado interventor. Ela é a sanção racionalizada do fetiche, pela qual a mercadoria capital encarna virtudes na harmonia de uma nova "idade de ouro". Noutra perspectiva, tampouco é suficiente o mero ataque à política econômica liberal; o que se requer é o exame crítico dos fenômenos concretos que já tornaram a globalização, possivelmente, a nova forma dinâmico-estrutural do capitalismo.
O fato de o capitalismo ter sido sempre mundial no sentido da interconexão das economias relevantes, por meio do fluxo de mercadorias, capital e serviços, não deve conduzir ao equívoco de que a globalização é um fenômeno antigo. Antiga é a internacionalização dos mercados domésticos mesmo quando ocorriam industrializações nacionais comandadas a partir do Estado. A internacionalização se metamorfoseou em globalização.
A globalização é o ápice -visível neste tempo histórico- do desenvolvimento capitalista e de sua irracionalidade. Irracional, porque ao projetar um descolamento crescente dos valores mercantis diante dos fundamentos econômicos, registra uma sociabilidade cada vez mais problemática e transtorna as noções articuladas de território-patrimônio e Estado-Nação. É, contudo, uma irracionalidade inteligível desde a lógica mesma do capital e de seu movimento histórico por libertar-se dos controles que a sociedade tenta lhe impor, e inteligível, "ça va sans dire", pela política pensada amplamente como antídoto ao economicismo.
É no âmbito deste quadro geral que se impõe caracterizar em que sentido existe uma globalização enquanto realidade efetiva, cujos traços econômicos fundamentais são:
1 - As grandes empresas industriais e financeiras componentes da tríade dominante -Estados Unidos, Japão e Alemanha- estão implementando a rede do mercado mundial em produtos, tecnologia, dinheiro e finanças. Com isto existe de fato uma globalização dos negócios da qual são compelidas a participar todas as empresas, inclusive as do capitalismo periférico, sob pena de eliminação pela concorrência. Esta é uma determinação que implica redefinição da territorialidade econômica a partir dos interesses do mundo dos negócios. O território relevante é o mundial, a partir de um caráter nacional, unicamente se isto for possível. Isto é, se existe uma base nacional calcada em consistência macroeconômica e em fundamentos industriais e tecnológicos, a empresa globaliza-se mantendo o controle acionário (propriedade) e seus interesses de modo solidário com a nacionalidade. Do contrário, a empresa globaliza-se despedindo-se de seus vínculos nacionais enquanto na economia do país vai encolhendo a parcela de empresas de propriedade doméstica, sendo a a desnacionalização patrimonial muito mais radical do que a correspondente à internacionalização dos mercados.
Portanto, neste sentido, o surgimento de uma outra territorialidade econômica em que o espaço e o mercado nacionais estão subordinados ao espaço e mercado globais é resultado da concorrência intercapitalista, liberta de entraves regulatórios. As grandes empresas líderes deste processo são multifuncionais, multisetoriais e multinacionais. Isto é, ocupam-se ao mesmo tempo das funções produtivas, comerciais e financeiras; alocam seus investimentos em diferentes produtos, confeccionando desde o bem de consumo descartável até o bem de capital mais sofisticado; atuam em diferentes mercados nacionais, utilizando-os, porém, segundo sua estratégia para o mercado global. Com a globalização, agora sim, é para valer: o capital não tem pátria! Estas características do movimento moderno das empresas do grande capital são a verdadeira "causa causans" da globalização.
Neste sentido, a desregulamentação dos mercados é uma mera resultante das pressões das grandes empresas da tríade, em especial, e originalmente das norte-americanas, por mobilidade e flexibilidade de seu capital, sobretudo desde o período de instabilidades aberto em 1971. Aliás é da natureza do dinamismo capitalista que seus agentes dominantes tratem de destruir os quadros regulatórios vigentes quando um período longo de expansão dá sinais de esgotamento, e eles tratam de abrir espaços e práticas para que sua riqueza-capital possa fluir compensatoriamente, a despeito dos custos sociais e políticos envolvidos.
2 - Moeda, finanças e patrimônio orientam as decisões de alocação da poupança financeira mundial. O surgimento do euromercado de moedas nos anos 60 foi o embrião da movimentação do dinheiro como capital a juros em crescente autonomização mundo afora, sem escapada crescente aos controles dos bancos centrais. Está aí a gênese da globalização financeira que antecedeu as demais formas de globalização. É o início da fuga dos capitais por valorizar-se libertos dos marcos regulatórios posteriores à Segunda Guerra que moldaram a "golden age". De fato, tal fuga é já uma resposta dos capitais bancários e industriais, de origem norte-americana, inicialmente, às barreiras que aqueles marcos regulatórios impunham, emblematizadas nos limites às taxas de juros e nas paridades cambiais relativamente fixas. A instabilização americana marcada pela inflação emergente, pela estagnação econômica relativa e a ocupação dos mercados nacionais internacionalizáveis, em países do centro e da periferia, adicionaram-se ao movimento anterior para detonar uma concorrência industrial e financeira generalizada por parte das multinacionais.
O funcionamento do capitalismo nos últimos 25 anos revela a existência de um processo autonomizado do dinheiro e das finanças (capitalização financeira) que corre em paralelo à geração de renda pela produção, processando-se contudo sob uma dominância financeira que constitui uma verdadeira financeirização da riqueza. Aquela capitalização não é apenas um período especulativo exacerbado e precursor último da grande crise de desvalorização, ela é um elemento da estrutura, essencial mesmo à gestão e realização da riqueza e gerador de uma instabilidade característica. Há incerteza monetária num mundo de "fiat money", de moedas fiduciárias -emitidas pelos Estados nacionais- nem sempre baseadas em sólidos fundamentos econômicos e convivendo com dinheiros privados (ativos financeiros de tipo quase-moeda). À escala global difunde-se esta incerteza num contexto plurimonetário em que nenhum dinheiro ocupa o "centro" -como coordenador da liquidez e das finanças- reforçando-se portanto os desequilíbrios entre os balanços de pagamentos. É inescapável uma elevada volatilidade cambial interativa com os "ups and downs" das taxas de juros e das taxas de capitalização financeira (nas bolsas de valores sobretudo) que reforçam a natureza especulativa e fictícia do cálculo e da riqueza capitalista contemporânea.
A financeirização da riqueza em níveis nacional e internacional explicita-se numa crescente defasagem entre os valores dos papéis representativos da riqueza (dinheiros conversíveis internacionalmente e ativos financeiros em geral -"paper wealth") e os valores dos bens e serviços assim como das bases técnico-materiais em que se funda a reprodução da vida e da sociedade (fundamentos econômicos).
3 - Nuclear na globalização é uma interdependência patrimonial dos proprietários dos principais países industrializados pela qual seus ativos e passivos estão de tal forma conectados a ponto de tornar a gestão público-privada da riqueza forçosamente interativa e supranacional, ainda que sem a coordenação virtuosa que é agora supostamente almejada pelo G-7. Tal interdependência transnacionalizada dá surgimento a uma "macroestrutura financeira global" (público-privada) formada pelos bancos centrais, pelos grandes bancos internacionais, por diversas organizações financeiras (corretoras, seguradoras, fundos de investimento), pelas grandes corporações industriais e pelos proprietários de grandes fortunas, todos operando em várias praças financeiras a valorização e desvalorização das moedas e dos ativos financeiros, títulos de propriedade representativos da riqueza.
4 - As grandes empresas com seu enorme poder financeiro manejam o dinheiro tanto na circulação industrial quanto na circulação financeira, que passam a ser domínios altamente conexos, ao contrário do passado em que a primeira era adstrita às empresas industriais enquanto a segunda aos bancos. Este monitoramento do dinheiro e das finanças, no que tange à geração e gestão de liquidez, dá àquelas empresas a possibilidade de não exercer plenamente os direitos de propriedade de seus títulos financeiros, quando existe a ameaça de corrida desvalorizadora, coisa que, se acontecesse, ocasionaria um gigantesco "crash" financeiro. Este poder privado de liquidez explica em parte porque as grandes flutuações dos mercados acionários não se transformaram em quebras generalizadas, até porque, embora, sempre os bancos centrais compareçam com a liquidez de sua moeda central, esta liquidez pública já não é onipotente diante da absurda dimensão da riqueza financeira.
5 - Relacionado ao ponto anterior está a transformação das finanças públicas em reféns deste processo que vai ao ponto de lhes retirar a capacidade de promover o gasto autônomo dinamizador do investimento, da renda e do emprego; de tornar financeirizada a dívida pública, que, como tal, sanciona os ganhos financeiros privados, amplia a financeirização geral dos mercados, a cuja especulação os bancos centrais são cada vez mais vulneráveis.
6 - Os preços financeiros, incluindo o dos ativos de capital cotados nas bolsas de valores, e o consequente sancionamento dos valores da riqueza em geral são crescentemente função das "regras" da concorrência intercapitalista em todos os mercados, das ações dos bancos centrais em conjunto com as organizações financeiras privadas e, finalmente, do arbítrio do Estado ou dos Estados nacionais relevantes, na instável e incerta demarcação de quão elástica pode ser a capitalização financeira dos ativos, a financeirização, a "dança" das moedas-chaves, as flutuações das taxas de juros e de câmbio, bem como qual o limite, nas crises, do processo de desvalorização e de desordem.
7 - É paradoxal a dinâmica dado que, por um lado, sendo dotada de potência financeira, tecnológica e de liquidez estratégica -distinta de uma preferência momentânea pela liquidez- viabiliza dinamismo mínimo à renda nacional e à acumulação de capital produtivo, afastando em princípio a ameaça de grande depressão. Ao mesmo tempo, promove a folia financeira -a capitalização fictícia- que redunda em crises cambiais, em dias de pânicos e manias (ainda que não de "crashes") nos mercados de capitais do mundo, em perdas importantes de reservas internacionais pelos bancos centrais, em problematização do desenvolvimento das forças produtivas, entendida como limitação a um amplo e generalizado crescimento com inovações ideológicas, difundível homogeneamente por setores e países (1).
8 - Explicitação da dispensabilidade da mão-de-obra e das limitações à ampliação dos salários reais como fonte de reprodução da vida, consubstanciada no desemprego estrutural e nas disparidades de renda, de riqueza e de chances de sociabilidade.
9 - Redução dos graus de liberdade na reestruturação das economias periféricas no atual quadro da divisão internacional do trabalho, da renda e da riqueza, impondo à maioria destes países tendências disruptivas.

Assim esta nova forma dinâmico-estrutural do capitalismo deixaria as seguintes questões: não terá sido já tão aprofundado o processo de mobilidade, libertação e multiplicação ilusória do valor-capital, mercadoria-fetiche, que sua função como ordenador de uma economia com chances de sociabilidade -convivência democrática e civilizada, acesso ao emprego e à renda, expansão vital e cultural- já esteja experimentando histórica e socialmente seus limites? E dessa forma a regulamentação não será apenas uma tímida aproximação à "ponta do iceberg", cuja totalidade por ela não se deixará "resolver"? Estamos diante de qual transição? Qual reforma, muito mais que re-regulamentação, é necessária? Qual forma de reorganização econômico-social e democrática é almejável? Que tipo de crise-transição é essa que, se bem encaminhada não for, nos colocará diante de uma "neobarbárie" da qual a práxis "neoliberal" e a impotência crítico-propositiva são mero intróito? Pragmaticamente: é possível regulamentar o capital globalizado sem intervir na própria lógica da concorrência e do afã de acumular por acumular, que é contemporaneamente dominado pela riqueza abstrata, monetário-financeira?

Nota:
1. Braga, José Carlos de Souza - "Economia Política da Dinâmica Capitalista (Observações para uma Proposta de Organização Teórica)", in "Texto para Discussão", nº 51, Instituto de Economia da Unicamp.

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