São Paulo, sexta-feira, 6 de setembro de 1996
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Da dupla nacionalidade

NELSON A. JOBIM

Até 1994, o Brasil não admitia a dupla nacionalidade para os seus cidadãos e decretava a perda da nacionalidade brasileira sempre que alguém se naturalizasse em outro país. No entanto jamais era arguida a "voluntariedade" dessas naturalizações. O que determinava o desaparecimento da nacionalidade originária era a decisão da pessoa de estabelecer vínculo político-jurídico com outra nação, ainda que não tivesse intenção de abdicar de sua cidadania brasileira.
A postura adotada, até então, era paradoxal. Enquanto se cancelava a nacionalidade dos brasileiros, houve sempre a preocupação da lei de garantir aos filhos de imigrantes, aqui nascidos, o direito de ser nacionais. Essa política vigorou por longos anos, já que, por termos sido um país de imigração, a formação do nosso povo foi fortemente vinculada aos fluxos migratórios.
Nas últimas duas décadas, contudo, observou-se nítida inversão desse processo. A substancial deterioração da situação socioeconômica do país passou a gerar crescente fluxo de brasileiros para o exterior, em busca de melhores condições de vida.
Uma vez lá fora, deparavam-se com um dilema quando, como condição para a permanência no país onde se encontravam, ou para assegurar o exercício de direitos, como trabalho, fixação de residência, acesso ao serviço público, aos benefícios da seguridade social e outros, eram constrangidos pela legislação estrangeira a se naturalizar. Logo em seguida, constatavam ter perdido automaticamente a nacionalidade brasileira.
Não poderia, no entanto, o país continuar a fechar as portas a esses filhos que, muitas vezes em situações-limite, migraram à procura de oportunidades aqui inexistentes. Até porque é de todo o interesse para o Brasil manter o vínculo político-jurídico da nacionalidade com esses brasileiros, senão por outro motivo, ao menos para facilitar-lhes o retorno, quando lhes for conveniente.
Sobretudo porque somente um reduzido número deles tenciona se radicar no estrangeiro; a maioria deseja apenas amealhar algum dinheiro, raramente pretendendo desvincular-se da pátria-mãe. Estes, quase sempre, acabam por retornar ao Brasil.
Outro não foi o objetivo da mudança empreendida na Constituição de 1988, pela emenda revisional nº 03/94, que inovou ao inserir no texto da Lei Maior dispositivo destinado a preservar a nacionalidade brasileira dos que se naturalizassem no estrangeiro. Houve o entendimento de que, embora a legislação estrangeira normalmente não impusesse a naturalização, em algumas circunstâncias cerceava suas atividades ou direitos, induzindo-os à naturalização.
Nesses casos, obviamente, o vínculo com o país natal jamais fora desfeito, quer do ponto de vista jurídico, quer do social ou do emocional. Nada mais justo, portanto, do que permitir a esses a manutenção da nacionalidade brasileira -ainda que naturalizados em outro país-, pois a dupla nacionalidade não é conflitante, já que é regra do direito internacional atribuir a cada país a decisão de estabelecer quais são seus nacionais e sob quais hipóteses perderão a nacionalidade.
Tanto mais relevante se mostra essa mudança de enfoque quando se conhece o expressivo número de brasileiros no exterior. O fluxo migratório estudado pelo Ministério das Relações Exteriores constata a existência de um contingente de cerca de 1,5 milhão de compatriotas vivendo no estrangeiro -o que comprova o acerto da sistemática hoje adotada.
O Ministério da Justiça encontrou também solução para aqueles que, sob a lei anterior, já haviam perdido a cidadania brasileira: os residentes no Brasil poderão solicitar sua reaquisição, de acordo com a lei nº 818/49. Já aos que permanecem no exterior será facultado pedir a revogação do decreto que declarou a cassação de sua nacionalidade. O elemento volitivo não mais é aferido quanto à aquisição da nacionalidade estrangeira, mas sim no que tange à brasileira -um tratamento mais consentâneo com a realidade em que vivemos.
Hoje, os reflexos de tão importante mudança da Constituição já são sentidos. Até o final de agosto, cerca de 80 pessoas, em diversos consulados brasileiros no exterior, já haviam entrado com pedido de retorno aos seus direitos de cidadão brasileiro.
Com essas medidas, temos certeza de ter resolvido uma grande preocupação de muitos brasileiros: o da luta pela sobrevivência em ambiente estranho e às vezes hostil, correndo o risco -agora inexistente- da perda do vínculo com a pátria onde nasceram e para onde pretendem um dia retornar.
Ao implantar essas modificações, partiu-se do pressuposto de que o direito deve sempre tentar acompanhar as mudanças na sociedade, e a legislação, adequar-se aos acontecimentos sociais. O Brasil, finalmente, flexibilizou o superado conceito de soberania absoluta, adequando-se às injunções desta nova era de abertura de fronteiras e de integração de nações.

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