São Paulo, quarta-feira, 11 de setembro de 1996
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Aos 75, o 'suspeito' d. Paulo fala da solidão

CLÓVIS ROSSI; LUIS HENRIQUE AMARAL
DO CONSELHO EDITORIAL

Perto da aposentadoria, cardeal arcebispo conta que Vaticano o via como defensor da Teologia da Libertação

LUIS HENRIQUE AMARAL
Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal arcebispo de São Paulo, faz 75 anos sábado, dia 14, a idade de aposentadoria compulsória, que ele dá como certa a curto prazo.
Até porque, pela primeira vez, revela de público o que se sempre se intuiu nos meios católicos: é uma figura suspeita no Vaticano.
Quem avisou Arns da "suspeição" foi um ex-secretário de Estado do Vaticano, o braço direito do papa.
Entre melancólico e irônico, o cardeal conta que, apesar da perseguição que sofreu e da suspeita em que recaiu por conta da Teologia da Libertação, jamais leu "até o fim" um livro dessa corrente, que adotou critérios marxistas para ler a realidade política e religiosa -em especial na América Latina.
"A teologia que me interessa é a que foi escrita até o quinto século do cristianismo", diz.
Às vésperas da aposentadoria, d. Paulo, em entrevista à Folha, falou mais do que costuma falar o religioso e o político.
Por exemplo, abriu-se pela primeira vez sobre a solidão do poder. "A única vez que chorei na idade adulta foi quando fui nomeado bispo", lembra ele, para quem o cargo afasta os amigos, que começam a disputar quem é o mais próximo.
Foi nessa solidão que, durante duas horas, em sua casa atrás do quartel da Polícia Militar da avenida Tiradentes, zona central de São Paulo, d. Paulo conversou com a Folha.
Foi no mesmo sofá em que incontáveis personalidades da vida pública brasileira dos últimos 25 anos se sentaram para conversar com esse franciscano catarinense, cuja fala mansa é um enorme contraste com os ódios e amores que sua ação despertou ao longo dos anos. Leia abaixo trechos da entrevista.
*
Folha - Sua ação à frente da arquidiocese foi marcada pela defesa dos direitos humanos. Como ela começou?
Arns -Começou praticamente antes de eu ser arcebispo. Por quê? Porque já estavam presos 13 padres, uma irmã e religiosos. Como bispo auxiliar, já os havia visitado junto com dominicanos. No dia que fui declarado arcebispo, fiz a visita à cadeia, que já estava programada antes.
Quem se firma numa coisa como direitos humanos, é quase a mesma coisa que -Paulo 6º já me dizia uma vez- se firmar no decálogo, nos próprios dez mandamentos de Deus. Porque eles brotam da própria dignidade humana e dão uma força tremenda.
Folha - Mas, nos seus contatos com o general Golbery do Couto e Silva, o sr. alguma vez chegou a dizer a ele frente a frente que havia tortura nos quartéis do Exército?
Arns - Houve muitos contatos com ele. Nós nunca revelamos os contatos, mas eu tenho uma estima muito grande. Se há uma pessoa de quem eu me lembro com gratidão daquele tempo e que estava do outro lado, mas também estava do nosso, é do general Golbery. Porque ele me convidou para uma conversa longa. Foi a primeira conversa que tivemos, e logo nos entendemos.
Folha - Com o general Geisel o sr. não chegou a conversar?
Arns - Ele só me disse uma vez o seguinte: é uma pena que, no Brasil, não tenhamos um ombudsman para o cárcere, porque, se tivéssemos, poderíamos entrar. Aqui é o comandante quem abre e fecha a possibilidade de uma investigação. Isso é uma pena, porque nós não podemos investigar.
Folha - O presidente Fernando Henrique esqueceu o que escreveu? Na ação de governo dele, ele não parece aplicar o que escreveu.
Arns - Perguntei uma vez a ele, E ele disse: o sr. não sabe como a política é difícil, quando a gente não tem a base que quer para agir. A gente não pode agir como quer, não é? Então ele se desculpou desse jeito. Mas ele disse: o senhor ainda vai ver coisas.
Então espero ainda que você, eu e ele e todo o mundo possamos ver coisas ainda, que sejam diferentes daquelas que vimos.
Folha - O sr. ainda não se arrependeu do seu voto supostamente a favor do Fernando Henrique na eleição de 94?
Arns - Eu não sei se eu votei a favor dele.
Folha - Como? Os jornais na época anunciaram que o sr. votaria.
Arns - Não, não, eles disseram que era entre o Lula e o Fernando Henrique, não é? Porque o Lula tinha um ministério muito bom. Ele anunciou ou ao menos deixou entrever quem seriam os ministros, não é? De maneira que ele atraiu muita gente naquele tempo. Mas não dava, contra o Fernando Henrique depois do Real, não dava. Não dava mais, o Real abafou.
Folha - O único presidente em funções que se sentou neste sofá foi o Fernando Henrique?
Arns - Nesta casa, eu não estou há muito tempo, mas, de fato, eu acho que nunca tive visitas de um presidente da República, nem seria de praxe. O Fernando Henrique veio por causa da amizade, não é? Quando fiz 50 anos de padre, ele veio. Depois de eleito, conversamos horas a fio aqui, ele e o Covas.
Realmente, trabalhamos juntos, isso eu não posso negar. Não posso negar porque é um fato, e eu acho que eu devo muito a ele, porque ele é muito inteligente, não é? Também é muito experiente. Parecia e ainda parece hoje que ele era comigo muito muito sincero. Ele dizia as coisas -eu até brinquei e já contei para uns jornalistas, que nós formamos um clube de loucos nas reuniões da Cúria.
Cada um dizia as coisas que achava importantes para a solução de determinado problema, não é? E não havia discussão, cada um era tempestade cerebral.
Na próxima vez, a gente via lá qual era o tema escolhia -o tema de novo, e falava diante de um microfone, e cada um falava, e esse exercício que a gente pratica em outras situações foi, aliás, muito útil, muito, muito útil para nós.
Folha - Quando ele se elegeu, suponho que o sr. talvez tenha dito: agora vai.
Arns - Ah, sim.
Folha - Porque o sr. conhecia, tinha toda essa franqueza etc. Hoje, quase dois anos depois, o sr. ainda acha que vai?
Arns - Eu acho que vai. Eu tenho como lema -você está esquecido- de esperança em esperança. Quer dizer, quando acaba uma esperança, começa outra.
Não tem, não tem como tirar isso, e o brasileiro tem tido isso. Mas assim mesmo eu posso dizer que o Fernando Henrique comigo, ele foi, realmente, foi sempre sincero.
Folha - O sr. lembra de algum conselho que o sr. deu a ele no último encontro, alguma idéia, alguma coisa nesse sentido?
Arns - Eu só dizia para ele: mas o sr. não está cumprindo o que nós conversamos antes, não é?
Então, a isso eu volto constantemente, mas um conselho mesmo a gente não dá a um presidente da República quando ele não pede, não é?
Folha - O sr. é sempre citado entre pessoas como o frei Leonardo Boff e outros "suspeitos" da igreja. O sr. não teme ou não acha que eventualmente o Vaticano possa também colocá-lo na lista dos suspeitos?
Arns - Uma vez a maior autoridade depois do papa, o secretário de Estado do Vaticano, chamou-me ao seu gabinete em Roma e disse: ninguém pode ouvir a palavra Teologia da Libertação sem que se ericem todos os cabelos e eles fiquem perturbados. E o senhor é tido como o grande defensor da Teologia da Libertação.
Então eu disse para ele: mas, engraçado, eu nunca li um livro da Teologia da Libertação inteirinho. Só ditadozinhos aqui, parte lá, parte acolá, artigos, mas nunca me interessei pela teologia, porque a minha especialidade é justamente o começo do cristianismo até o quinto século. Como é que o cristianismo brotou, entrou no mundo, se aculturou na Grécia, Roma e foi até o quinto século.
Isso eu estudei durante, ensinei durante vinte e tantos anos não é? Estudei durante toda a minha vida. Folha - E a teologia moderna?
Arns - A teologia moderna me interessa, claro, mas no sentido de atitude: libertar o homem da miséria, libertar o homem dos vícios que fazem com que a convivência seja intolerável, como está sendo agora na questão da violência etc.
Então a atitude de libertação é obrigatória para um cristão, a meu ver, obrigatória porque nós temos que livrar-nos daquilo que impede de sermos irmãos e irmãs uns dos outros.
Então ele disse: não, eu compreendo o senhor. Eu só queria avisar o senhor que é por isso. O senhor é visto como alguém suspeito porque edita, inclusive, dá o imprimátur (permissão para publicar texto).
Eu respondi: mas eu dou o imprimátur depois que a Comissão de Teologia dos Bispos do Brasil aprovou o texto. Aí ainda dou para um teólogo de minha confiança e mando ler, e, quando eles aprovam, o que eu vou dizer, não é? Então eu dou a aprovação, e aquilo se publica, mas outros bispos não querem se expor a isso.
Eu acho necessário porque a Teologia da Libertação é, como o próprio papa disse, um elo dentro da teologia. E ela é necessária.
Eu continuo nessa atitude de ter, digamos, uma dificuldade em ler muito a Teologia da Libertação e em fazer a Teologia da Libertação, eu tenho, tenho dificuldade. Eu não tenho dificuldade em assumir uma postura de libertação. Isso é muito diferente.
Isso me fez entrar na luta pelos direitos humanos, na luta pela cidadania, na luta por, afinal, tudo o que enobrece a convivência humana, mas isso não me faz entrar numa corrente teológica diferente daquela em que eu me formei e que eu ensinei durante vinte e tantos anos, que eu também acho que era de libertação.
Eu também acho que era, só que era outro tipo, não era política como a atual e talvez também em defesa do mais pobre.
Tem a opção dos pobres, que é muito importante também, e tinha uma série de características semelhantes às nossas, mas não era propriamente combativa. Ela era aceita pela corrente da igreja.
Folha - Como é que o sr. se sente quando algumas pessoas dizem: antes, d. Paulo defendia os comunistas -aí generalizando para todos os que eram perseguidos pela ditadura- e agora d. Paulo defende os criminosos.
Arns - Eu me sinto, claro, atingido, porque é impossível você, como pessoa, não sentir quanto é atacado em sua honra, não é?
Porque essa é uma questão de honra para um arcebispo. Ser, por exemplo, chamado simplesmente de criminoso ou de fomentador do crime, essa é uma ofensa muito grave, talvez, a mais grave que possam fazer.
Eu sinto isso, mas também sinto que não posso desistir de uma coisa que é essencial ao cristianismo: defender aqueles que não têm defesa e defender aqueles que têm razão em pontos que a maioria ainda não reconhece. Por exemplo, que a gente defenda um outro tipo de cadeia no Brasil, um outro tipo de polícia no Brasil, um outro tipo de governo no Brasil, um outro tipo de, digamos, produção e distribuição de renda no Brasil.
Essas são coisas que pertencem à religião. São essenciais à vida humana e, se eu não defendo isso, eu não vejo sentido na minha vida, não é?
Tem de tolerar, e houve quem sofresse mais do que eu e antes que eu, o Cristo. Ele foi crucificado com 33 anos, e eu aos 75 ainda não fui, não é?
Folha - Mas os bispos todos fizeram essa opção em Puebla. Por que o sr. fica sempre no pelotão de fuzilamento em primeiro lugar?
rns - Bom, possivelmente porque sou cardeal.
Folha - Agora, depois de o sr. deixar a arquidiocese, o que o sr. gostaria de fazer que o sr. não pode fazer porque a sua atividade o impede? Que tipo de hobby o sr. gostaria de ter?
Arns - O que eu sempre fiz na vida foi cuidar de pessoas de idade. Isso eu fiz como estudante, eu fiz como padre novo, fiz como diretor dos estudantes, eu pedia ao provincial que mandasse até os padres de idade que não se dessem bem em algum lugar etc., não é?
Folha - O sr. gostaria ser lembrado como na Arquidiocese de São Paulo?
Arns - Não, eu não tenho muita fé assim na memória do povo. Eu tenho só uma preocupação, ter ajudado aqueles que mais sofrem. Aquilo eu acho que dá força, ajudar os que mais sofrem.
Eu vou fazer agora, digamos, uma reunião com Santo Dias. Vou ver os que mais sofrem lá. É a criança que foi acusada, criança que foi batida pela polícia, criança que foi morta e a mãe está lá e assim por diante, não é?
Então eu gostaria de poder dizer que ajudei aos que sofrem.
E os amigos que o sr. encontrou?
Arns - Só encontro os amigos periodicamente para trabalho. Assim eu devo dizer, por exemplo, o Hélio Bicudo (deputado federal pelo PT-SP) é meu amigo de coração mesmo -de coração. Posso dizer: eu admiro esse homem. Simplesmente eu admiro esse homem. E, no entanto, nós nos encontramos. Não dá, o cargo...
Folha - É absorvente demais.
Arns - É absorvente demais e também é um cargo em que as pessoas não querem que a gente tenha amigos. É curioso, não é? Não querem que a gente tenha amigos.
Folha - As pessoas, que pessoas?
Arns - Todas, porque elas querem ser, se são católicos fervorosos, querem ser amigos. Ou quando vem outras: ah, ele está sendo influenciado por tal e tal. Eu nunca trouxe um parente para perto de mim por esse motivo, para não dizerem: ele está sendo influenciado por parente, não é?
Eu tenho irmão engenheiro. D. Benedito queria -é um bom engenheiro- que ele fizesse algumas plantas de igrejas aqui para São Paulo. Eu disse: não, não, ele é meu irmão.
Folha - Qual o perfil do cardeal que o sr. gostaria que o sucedesse na arquidiocese? Que o sr. pudesse...
Arns - Resumindo, eu diria, amigo do povo, não é? Amigo do povo é a grande qualidade que ele precisaria ter.
E, se a gente completasse o ponto de vista religioso, ser amigo do povo e firme com o evangelho, não é? Quer dizer, são as duas coisas que eu sempre digo para os meus padres e que eu acho que também para mim é essencial.
E, como corintiano, amigo dos sofredores também.

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