São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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A invenção das tradições

SILVANA RUBINO

interpretar os discursos oficiais sobre o patrimônio cultural, este é o objetivo do livro "A Retórica da Perda", do antropólogo José Reginaldo Gonçalves. "Colunas da Educação", de Maurício Lissovsky e Paulo Sergio Moraes de Sá, é uma coletânea de documentos diretamente relacionados à construção do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, obra desde muito inscrita na história da arquitetura moderna brasileira e internacional. Aparentemente abordando temas distintos, os dois livros recém lançados aproximam-se ao tratarem de iniciativas que têm início no governo de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945. E também, por uma característica bastante específica, no Brasil, das trajetórias do modernismo e da preservação: foram conduzidas pelos mesmos atores. Dos sete arquitetos que trabalharam nos primeiros anos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), seis deles eram vinculados ao movimento modernista -incluindo-se aí Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.
"Todo espaço potencialmente arquiteturável é sempre ocupado por uma forma em detrimento de outra: cada projeto construído contém em si uma componente destrutiva; um gesto de imposição", escrevem Lissovsky e Sá no texto em que situam a densa coletânea de documentos originais que reuniram. A questão tratada por eles é a opção política, institucional, cultural e estética, que resultou em um edifício emblemático. Escolha feita principalmente pelo ministro Gustavo Capanema, que travou uma batalha para imprimir, até no espaço construído, a marca de sua passagem e do Brasil posterior à Revolução de 1930.
O livro de Gonçalves tematiza escolhas feitas por pessoas autorizadas -e a construção social dessa autoridade é tema e pressuposto do trabalho-, eleições daquilo que deve permanecer, enquanto a outros bens se permite o esquecimento. O autor pesquisa num campo que, desde meados da década de oitenta, vem atraindo diversos antropólogos, decerto encorajados pela publicação da coletânea de Eric Hobsbawn e Terence Ranger intitulada "A Invenção das Tradições".
Estudando dois momentos da retórica sobre o patrimônio histórico e artístico nacional -as gestões de Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1967) e de Aloísio Magalhães (1979-1982)- frente ao SPHAN, o autor mostra como a noção de patrimônio, construída nos dois momentos pela instituição, trabalhou em frentes distintas: de um lado, a idéia de uma perda iminente, contra a qual a nação deveria se mobilizar, e, de outro, uma idéia de futuro, daquilo que era preciso guardar para as futuras gerações. Uma idéia de nação, essa comunidade imaginada, que deveria ser mostrada para si e para o mundo.
Sem dúvida, preservar, como projetar, é um gesto de imposição. A questão não é apenas política e de construção de uma imagem de estado nacional, mas inclusive intelectual e institucional, de construção de um campo. E a construção desse campo também incide sobre critérios de exclusão e inclusão. Falta ao livro de Gonçalves a lembrança de que, por trás dos pilotis do Ministério e das igrejas mineiras, temos as vertentes perdedoras: José Marianno Filho e o neocolonial, Archimedes Memória e a arquitetura monumental de um nacionalismo literal e patriota, Gustavo Barroso e o culto ao passado imperial. Perdedoras na história oficial, pois conviveram com o modernismo por alguns anos e começam agora a merecer estudos. Vale citar o livro recente de Lauro Cavalcanti, "As Preocupações do Belo", que mostra como as duas vertentes coabitaram com uma forte dose de conflito no projeto estético da era Vargas, como eram duas facetas do mesmo período.
Voltando ao discurso hegemônico do patrimônio, podemos pensar Rodrigo e Aloísio como representantes de duas matrizes, não como duas abordagens que se excluem. Duas construções ficcionais, de passado e de cultura, onde a nação é apresentada como uma entidade dotada de coerência e continuidade. A primeira está voltada para o presente no passado, na idéia de que Aleijadinho foi o Niemeyer de seu tempo. A segunda, para o passado no presente, na cultura brasileira ameaçada de extinção. A idéia de perda iminente, de ameaça inequívoca e de fragmentos que precisam ser reunidos fundamenta as duas concepções. Eu argumentaria que, longe de serem óticas que se sucederam, estas duas matrizes estiveram presentes o tempo todo na história do SPHAN e da preservação no Brasil. No primeiro momento, entre Rodrigo e Mário de Andrade. O fundador do patrimônio tem um discurso próximo do anteprojeto de Mário quando ressalta, em 1936, a relevância do nosso patrimônio arqueológico e pré-colombiano. Surpreende quando, pouco antes de falecer, passa perto de desconstruir o mito de Aleijadinho, propondo que o SPHAN estude artistas desconhecidos, afirmando a existência de uma escola mineira, incentivando quase uma história a contrapelo daquela que o SPHAN ajudou a construir. E Mário, por sua vez, por muito que escrevesse a respeito do patrimônio intangível nos seus relatórios de "descobrimento", esteve bastante preso à noção de patrimônio edificado, elegendo o colonial como período por excelência do nosso passado histórico e artístico.
Acontece que o próprio SPHAN foi, digamos, se "antropologizando", incluindo cada vez mais itens presentes no anteprojeto de Mário de Andrade, sem abrir mão da vertente hegemônica, o tão falado patrimônio de pedra e cal. Não apenas nos discursos mas sobretudo na prática de tombamento e restauro. A recuperação do Solar do Unhão, em Salvador, no final dos anos cinquenta, foi encomendada à arquiteta Lina Bo Bardi, conhecida por seu "olhar antropológico" e suas preocupações com cultura popular. No mesmo período, em São Paulo, Luís Saia lançava-se a recuperações marcadas por uma quase obsessão historicista. É delicado, por isso, falarmos de dois momentos tão claramente distintos, como se em cada um deles não houvesse seu contradiscurso a propor novas negociações. A prática do SPHAN é também, a cada momento de sua história, uma tradução de suas intenções, uma concretização do debate intelectual.
É este o diálogo que quero aqui estabelecer com o autor. Retomando a frase de Wittgenstein, com a qual Gonçalves abre seu livro -palavras são também atos-, podemos pensar, a partir da necessidade de se analisarem os produtos dessas políticas culturais, sejam elas bens tombados, leis, publicações ou novos edifícios, que atos são também discursos e que como tais podem e devem ser considerados "bons à penser" pelo antropólogo. Pois a prática do SPHAN dialoga com os discursos sobre patrimônio cultural, ora os reiterando ora os contradizendo. Se Rodrigo escreveu sobre a importância do patrimônio etnográfico, este foi ignorado nos tombamentos realizados em sua gestão. O Brasil colônia foi eleito como imagem máxima da nação, não tanto nos discursos, mas sobretudo na proporção de bens desse período que foram tombados e recuperados. Embora o patrimônio recente não constasse diretamente dos estatutos da instituição, foi uma prática significativa, uma vez que legitimou justamente a arquitetura preconizada pelos arquitetos modernistas ligados ao SPHAN.
É nesse ponto que os dois livros se encontram, e essa aproximação não é uma construção dos autores, ou minha: é constitutiva desse momento de nossa história política e cultural que foi, é possível afirmar sem receio, nos dois casos, uma experiência absolutamente bem-sucedida. Que gerou Brasília e Ouro Preto, que nos legou Portinari e Aleijadinho.
"Colunas da Educação" traz documentos em estado bruto, desenhos, cartas, fotografias, ofícios, pareceres e artigos publicados na imprensa, com um trabalho de interpretação que não pretende dar conta de uma ínfima parte do que esses documentos sugerem e possibilitam em termos de análise. Mas quem já passou dias, meses, em arquivos, sabe da importância de obras dessa natureza. "A Retórica da Perda" ressente-se um pouco, sendo uma obra de antropologia, de uma descrição mais densa, de uma etnografia onde as narrativas analisadas por Gonçalves estivessem mais pulsantes no texto. Se mais audíveis, os discursos de Rodrigo e Aloísio não apenas reforçariam os argumentos expostos no livro como também convidariam outros autores a tomar parte dessa conversação coletiva.

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