São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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Sócrates bailarino e construtor

BENEDITO NUNES

o diálogo filosófico, a exemplo desse "Eupalinos ou o Arquiteto", agora traduzido em claro e elegante português, o ensaio de indagação hipotética ("Introduction à la Méthode de Léonard de Vinci"), a narrativa ficcional à maneira de conto especulativo (ciclo "M. Teste"), os fragmentos conceptuais e apotegmas de "Tel Quel", o texto dramático do inacabado "Mon Faust" e as anotações diárias dos "Cahiers" -gêneros em que a versátil prosa de Paul Valéry se exerceu- orquestram, à semelhança dos instrumentos solistas de uma sinfonia concertante, em vários timbres de estilo, harmonizados pelos mesmos conceitos, uma só experiência pensante, que "a paixão do intelecto" tornou comum ao poeta e ao filósofo, adversários fraternos convivendo nesse escritor.
A insistente desconfiança de Valéry em relação à filosofia parece ter afinado nele a mentalidade do filósofo, apta a passar de uma questão a todas as outras. Ao tratar da arte, ou particularmente da literatura e da poesia, o filósofo já se defrontava com os problemas mais gerais do pensamento -o ato de conhecer, a linguagem, o Eu, a relação entre alma e corpo, o sono e o sonho, a simulação, a sinceridade, as regras morais-, que também faziam parte da experiência do poeta, subjugado à cadência das idéias, ao ritmo do sentido, flama ou claridade, como a "cintilação serena" do céu, ilusório disfarce do devir ao qual vãmente se opõe o cruel Zenão de Eléia, de "Le Cimetière Marin". Uma longa hesitação entre som e sentido -foi o que, resguardado embora por outra metáfora da claridade, o "lumen naturale" do intelecto, podia dizer da poesia, sempre que passava o seu encanto, o irmão filosófico siamês do poeta.
Mas essa luz natural, que o sono ofusca, nunca chegará a clarear o Absoluto, alvo das idéias abstratas do temerário Espírito. Ela ilumina quanto mais se projeta nas coisas que a limitam, e que o Espírito não fabricou, reconhecendo-se finita num mundo de possibilidades infinitas. Fora do número ideal de uma série ilimitada de fenômenos, o infinito, deixando de ser manejável como algoritmo, existe apenas, segundo M. Teste afirmou, no papel onde está escrito. Só 19 anos depois, contando-se a partir do primeiro escrito do ciclo ("La Soirée avec M. Teste", 1896), ou 11 anos mais tarde a partir dos últimos ("Lettre de Madame Teste", "Lettre d'un Ami", 1924), retrucará Alberto Caeiro, nascido em 1913, o primeiro descendente da mentalidade não metafísica desse personagem de Valéry, a uma indagação de seu estarrecido discípulo Álvaro de Campos: "Não concebo nada como infinito. Como é que eu posso conceber qualquer coisa como infinito?".
Ao deparar-se com um abismo, Leonardo da Vinci convertia-o num ponto geométrico. O "thaumazein", o espanto filosófico, não é o silêncio dos espaços infinitos. Antipascaliano, Valéry deixa de lado a pergunta de Leibniz -por que alguma coisa existe em vez do Nada? "O espanto não decorre de que as coisas sejam; mas sim que elas sejam tais como são e não diferentes" ("Varieté 1", Paris, Gallimard, 1924, pág. 196). Ao reinventá-las, a arte descobre uma figura diferente deste nosso mundo, extraída dentre outras possíveis, de que "possuímos, sem sabê-lo, todos os elementos de grupo infinito. É o segredo dos inventores" (idem). São inventores os sábios, os artistas e poetas, aqueles que conhecem e aqueles que constroem.
Na verdade, porém, desde que não separemos a inteligência de seu berço nativo, a imaginação, há um só mecanismo inventivo para as três classes. E esse mecanismo é poético: os sábios, nisso também incluindo os filósofos, constroem tanto quanto os artistas e poetas conhecem. Numa situação talvez incômoda, Valéry pertenceu aos dois partidos, que Juan de Mairena, o professor de retórica, heterônimo de Antonio Machado, distinguiu em suas "Sentencias, Donaires, Apuntes y Recuerdos" (1936): o dos que vão da poética à filosofia e o dos que vão da filosofia à poética. E por isso experimentou o inevitável movimento de vai-e-vem entre uma e outra, resumido no estilo irônico de "Eupalinos" -extensivo ao outro diálogo filosófico do escritor, "L'Âme et la Danse" (1), que lhe é afim. Onde está a ironia desses dois escritos?
Não é difícil percebê-la seguindo-se a procedência de seus personagens, tomados da tradição grega clássica, mais precisamente, dos textos de Platão, de onde emigra a principal figura comum a ambos, Sócrates, contracenando, tanto num como noutro, com o jovem Fedro, comparsa único em "Eupalinos", e posto, em "A Alma e a Dança", ao lado de Eriximaco. Sócrates não vem de um determinado diálogo platônico; estando em quase todos, eleito porta-voz remoçado, ideal, de seu ilustre discípulo, representa-o numa encarnação do platonismo. Já Fedro está ligado ao "Banquete", de que também participa Eriximaco, e àquele outro escrito de Platão, o "Fedro", ao qual deu nome. Não pode ser casual esse duplo vínculo.
São esses diálogos de Platão os suportes memoráveis da doutrina das Idéias no amor e na beleza. No "Fedro", Sócrates relata ao seu jovem amigo a evolução das almas, que, além de imortais, preexistem ao corpo, em torno da beleza pura, supra-sensível, independente da matéria, descrita por Diotima a Sócrates no "Banquete", metaforicamente -o oceano das coisas belas-, e que lhe serve para definir o meio de geração do amor, garantia da sobrevivência após a morte. Foi esse par da dialogia platônica que também gerou de tal primado do belo universal e abstrato -concorde com o bem e, por isso, verdadeiramente real- a estética, como "sonho de filósofo", em sua função reguladora das artes, completada pela moral e pelo saber metafísico, conhecimento das essências mais altas e elevadas, concebíveis para além do mundo físico, postulado no diálogo da maturidade platônica, "A República". É aí que se define o perfil de uma metafísica, doutrina de subordinações hierárquicas entre instâncias separadas: a alma regente do corpo e a ela superior -em nome da qual o governante da pólis sadia, equilibrada, censurou os modos musicais e os discursos nocivos à saúde espiritual do cidadão-, a sensibilidade separada da inteligência, a linguagem separada do pensamento, a arte do conhecimento.
Incorpora esses ensinamentos todos o Sócrates dos diálogos platônicos, cuja personalidade, a despeito da prévia confissão de ignorância, preparatória da maiêutica, e que nada tem de humilde, é altaneira, soberana. Por certo ele sabe ouvir os seus interlocutores; mas, depois que toma a palavra, guia-lhes o pensamento para o sim e para o não, para a concordância e a discordância dialeticamente obtida, sem que, por sua vez, o mestre procure aprender o que ignora com seus embasbacados discípulos. Além disso, em nenhuma passagem dos diálogos platônicos se menciona que Sócrates tenha alguma vez dançado ou, como nas réplicas de Valéry, louvado a dança e a música.
São distintos os cenários das duas réplicas: em "A Alma e a Dança", os amigos, saciados ao fim de um banquete, decidem conversar, voltando as costas para a farta mesa, quando entram as dançarinas que lhes proporcionarão o tema a discutir. Ao contrário dessa aparente reconstituição de uma cena real da vida grega, "Eupalinos" figura Sócrates e Fedro no além-túmulo, onde se aproximam e trocam idéias, começando aquele a dizer como percebe o real do ponto de vista da outra vida: em vez do mundo das idéias, o rio do Tempo, imagem da eterna mudança. Mas os dois diálogos alteram o tradicional registro filosófico do discurso socrático; e por isso também o primeiro é, tanto quanto o segundo, um "diálogo dos mortos", naquele sentido da paródia, intentada, na fase tardia da cultura grega, por Luciano de Samosata, que implica sempre numa reversão irônica dos modelos, sejam deuses ou heróis.
A ironia desse novo par do "diálogo dos mortos" está em recriar um Sócrates às avessas, melhor dizendo, um Sócrates desplatonizado, seduzido, como o jovem Fedro e o médico Eriximaco, pela dança, pela música e pela arquitetura, e que, disposto a aprender com seus discípulos, nega tudo quanto ensinou, salvo o seu original método da pergunta maiêutica -o que é a dança?- e o estado de vigília racional. Porta-voz do pensamento antimetafísico de Valéry e não mais de Platão, louva a superioridade do corpo sobre a alma, aceita a dependência material da beleza, a inteligência interligada ao sensível pela imaginação, defendendo a semelhança do conhecimento com o fazer artístico, ato do pensamento aderido à linguagem. Desembocamos, enfim, na orla dos conceitos que harmonizam os aspectos filosóficos da diversificada experiência pensante de Valéry, concretizada nos vários gêneros de sua prosa.
"Pelos deuses, as luminosas dançarinas!...", exclama Sócrates em "A Alma e a Dança". "Que viva e graciosa introdução aos mais perfeitos pensamentos!... Suas mãos falam e seus pés parecem escrever". O espetáculo tem algo de sonho, sem escapar à vigilância racional, pois que ordenada sequência de atos, "todo penetrado de simetrias". Mas a razão se desapercebe do que os "corpos realizam obscuramente", como num trabalho de parto ou de metamorfose, até se libertarem do espaço e do tempo, o que Sócrates vê pelos atilados olhos de Eriximaco no movimento das bailarinas. "A razão, algumas vezes" -observa o médico grego- "parece-me ser a faculdade de nossa alma que nada compreende de nosso corpo" (2). A razão sonha talvez em dispensar o corpo, torná-lo inefetivo, em proveito da alma. E, no entanto, o desejo de imortalidade empalidece diante daquele outro desejo da alma, que é "ter um corpo e uma duração" ("Tel Quel 1", Paris, Gallimard, 1944, págs. 68-9). Separa-se dele, quando morre, causa-lhe grandes dores, mais do que justificáveis para Leonardo da Vinci. Pois o que é a alma separada do corpo? Perdendo a casa onde habita, ela perde quase tudo, talvez mesmo a lembrança de ter sido. O menosprezo do corpo, como um trapo, herança pitagórica do platonismo -"soma sema"- foi rejeitado com razão, pelo tomismo, a filosofia da Igreja, em nome do dogma da "restituição da carne".
Começando na "Introdução ao Método de Leonardo da Vinci", esse elogio ao corpo, cuja organização é uma maravilha ("ele possui um excesso de funções e de recursos para não corresponder a uma exigência transcendente", "Varieté 1", pág. 187), e que é princípio e fim da arquitetura, medida da habitação humana, nela entranhada, culmina no discurso do arquiteto Eupalinos, relatado a Sócrates por Fedro: "Ó corpo meu, que me lembrais a todo momento o temperamento de minha índole, o equilíbrio de vossos órgãos, as justas proporções de vossas partes, que vos fazem existir e vos restabelecem no seio das coisas moventes, vigiai minha obra; ensinai-me caladamente as exigências da natureza; comunicai-me essa grande arte da qual sois feito, da qual sois dotado, de sobreviver às estações e de vos refazerdes dos acasos. Que eu encontre em vossa aliança o sentimento das coisas verdadeiras; moderai, fortalecei, assegurai meus pensamentos... Minha inteligência mais bem inspirada não cessará, caro corpo, de chamar-vos a si doravante; nem vós, eu o espero, de prodigar-lhe vossas presenças, vossas instâncias, vossos afetos pontuais, pois encontramos, finalmente, vós e eu, o meio de nos unirmos, o nó indissolúvel de nossas diferenças: uma obra que seja nossa filha" ("Eupalinos", págs. 67-9).
Essa união, na obra arquitetônica, da inteligência e do corpo, dá-se por intermédio da matéria, em que o trabalho da arte se condensa. A matéria, que solicita a sensibilidade e a imaginação, também convoca o ato de pensamento, como projeto que se transforma em acontecimento: a obra, produto de um fazer inteligível, sendo ela mesma um entendimento ativo, operatório -chamado de forma-, consumado num instante do tempo. Daí o comentário de Eupalinos: "O que eu penso é factível, e o que eu faço se relaciona com o inteligível". Essa dupla relação entre um pensar "faisable", sério, porque em conexão preliminar com o corpo ("O pensamento alcança seriedade por intermédio do corpo", registra um fragmento dos "Cahiers 1" (Paris, Pléiade, 1973, pág. 1120), e um fazer inteligível, porque em conexão preliminar com a matéria, também marca o ponderável limite da luz natural da inteligência, em Valéry, como razão céptica, razão que se observa, desconfiada, observando seus próprios conceitos "in nuce", interrogados dentro da mesma experiência pensante variável, que harmonizam, mas a que não se sobrepõem como idéias definitivas.
Nem o elogio do corpo incensa-o como substância, nem a louvação da matéria promove-a a objeto de uma tese materialista, a despeito da simpatia, em honra da simplicidade explanatória, do filósofo-poeta por essa doutrina. O importante do corpo não reside no que ele é e sim no que ele faz. Sua identidade, não propriamente material, está fora dele mesmo, em seu conluio com a natureza, com o cosmos, que o ultrapassam. Corpo e matéria abrem-se, na arte, para o pensamento. Nem por isso a filosofia de Valéry é idealista.
O "cogito" cartesiano é tautológico, se o considerarmos como proposição metafísica da identidade espiritual do homem. O "eu penso" diz sempre o mesmo, indefinidamente, porque indica o insuprimível "si mesmo" e não o que eu sou. Porém, essa declinação pura do Eu distancia-se do sujeito formal kantiano, representação acompanhante do exercício do pensamento. Se me penso, se penso o pensamento, o Eu se divide. A consciência reflexiva é a consciência de mim como outro, sem que, entretanto, possa deixar de pensar-me, cada vez topando com o inesgotável "si mesmo" e com aquilo que já não sou. E se me penso "ad extra", nos sons, cores, volumes, palavras, a resistência da matéria volve-se sobre mim, me revela, me transforma. Na obra continuo sendo Eu e outro, na companhia das coisas circundantes ao sujeito, que não sei o que é. Por ter construído edifícios, acabou Eupalinos construindo-se a si mesmo. Essa afirmativa não deixa de chocar Sócrates. Construir não é diferente de conhecer? Medida da reversão irônica do platonismo e, consequentemente, dimensão do novo Sócrates, que um dia poderia ter sido arquiteto, o conceito de construção, central ao já tantas vezes citado estudo de Valéry sobre Leonardo, liga o fazer artístico -que se aparta do produzir da natureza, também ultimado numa forma- ao conhecimento, e ambos à linguagem.
Um produto da natureza, aquele seixo liso e polido, casualmente rolado pelas ondas, e que o Sócrates de Valéry, ainda jovem, recolhera na praia, como que uniria a matéria e a forma, a potência atualizada pelo ato num só perfeito resultado. Tudo o que existe provém ou do acaso ou da "physis" ou da prática dos homens. Valéry segue as pegadas da física (ou da metafísica) de Aristóteles, mas sem tentar transferir às obras, como o Estagirita, a organicidade, a ordem, dos produtos naturais. Pois que nas obras humanas, "tudo acontece ao contrário. Sua estrutura é... uma desordem!" ("Eupalinos", pág. 123). A desordem que será preciso para construir uma nova ordem mediante "atos de um pensamento" (idem, pág. 135). Tudo é possível no pensamento; mas a possibilidade se efetiva em escalas separadas, porque somente aliado à matéria da natureza pode o ato construir a obra como forma. "Construir" -e voltamos ao estudo sobre Leonardo- "é o que existe entre um projeto ou uma visão determinada e os materiais que foram escolhidos. Substitui-se uma ordem à outra, que é inicial, quaisquer que sejam os objetos ordenados. São pedras, cores, palavras, conceitos, homens etc., sua natureza particular não muda as condições gerais dessa espécie de música, em que desempenha a função de timbre, se continuamos a metáfora" ("Varieté 1", pág. 248).
Mas é essa metáfora o que permite juntar, em confronto com as demais artes, a "pérfida música", envultante "massagem", e o "complexo encanto" da arquitetura, concebido, à maneira do renascentista Alberti, como ordenação do espaço urbano. Ambas edificam ao redor de nós, a primeira um templo de sons, um "edifício móvel" (a imagem é hegeliana), dentro do qual pensamos; a última, um múltiplo acorde de superfícies, profundidades e alturas, por onde andamos. Nas duas construímos as formas, tomando por base materiais que não engendramos.
De análoga maneira, no conhecimento, a experiência, por nós inengendrada, fornece ao ato de pensamento os materiais sobre que edifica os conceitos teóricos. Ambas espécies de construção, a cognoscitiva e a artística, pressupõem a linguagem. Os conceitos se traduzem em outros conceitos. E as formas, intraduzíveis, acenam e gesticulam. Na dança, as mãos falam e os pés escrevem. Na arquitetura, há edifícios que cantam e outros que simplesmente falam. Sócrates poderia tê-los construído, se tivesse suspeitado que a linguagem já secretamente edificara, pela força de suas metáforas, a idéia do belo universal e abstrato.
Começando por essa idéia, a reversão irônica do platonismo no diálogo de Valéry, em que Sócrates converte-se num anti-Sócrates, atinge, finalmente, a própria "ciência do belo", a estética, incapacitada para falar das artes sem distanciar-se da experiência concreta e complexa que nos proporcionam. "Eupalinos ou o Arquiteto" nos ensina, num contradiscurso estético, exemplificado com a arquitetura, que só se pode falar de uma arte qualquer se dela nos aproximarmos fenomenologicamente e descrevermos, por meio de metáforas, a singular universalidade de suas obras.

Notas:
1. Valéry, "Eupalinos ou l'Architecte, précédé de L'Âme et la Danse", Paris, Gallimard, 1924.
2. As traduções de "L'Âme et la Danse" são nossas, como nossas também são as traduções de outros textos de Valéry, exceção feita a "Eupalinos".

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