São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O drama romântico brasileiro

DÉCIO DE ALMEIDA PRADO
MACÁRIO AFASTA-SE NÃO SÓ DO MELODRAMA, MAS DO PRÓPRIO TEATRO

"Se algum dia o historiador da nossa ainda nascente literatura, assinalando a decadência do teatro brasileiro, lembrar-se de atribuí-la aos autores dramáticos, este livro protestará contra a acusação." José de Alencar
A relação de escritores que escreveram para o teatro entre 1838 e 1868 -as nossas datas fronteiriças- encerra os melhores poetas românticos, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Castro Alves, além de José de Alencar, o principal romancista do período. Se adicionarmos que Fagundes Varela e Casimiro de Abreu, entre os poetas, e Joaquim Manoel de Macedo, entre os romancistas, também pagaram tributo, leve ou pesado, à dramaturgia, teremos de admitir que o teatro foi um dos gêneros prediletos do romantismo brasileiro, somente ultrapassado, na prática literária, pela poesia. Na França, a nossa mestra, a nova escola vencera no palco o velho classicismo. Tanto mais razão para que no Brasil todo escritor, fosse qual fosse a sua vocação, tentasse adquirir no teatro o seu certificado de proficiência ficcional. Escrever romances era facultativo. Escrever peças, praticamente obrigatório. Nem historiadores, como Varnhagen e Joaquim Norberto, escaparam à regra.
Tal fato explica, porventura, a precocidade estranha de nossos dramaturgos. Álvares de Azevedo e Castro Alves compuseram os seus textos dramáticos aos 20 anos. Aos 23 Gonçalves traçou a sua obra-prima, "Leonor de Mendonça", mas já contava então entre os seus guardados com dois dramas juvenis. Martins Pena inicia a carreira dramática aos 22, Agrário de Menezes e Paulo Eiró atingem o apogeu pessoal com "Calabar" e "Sangue Limpo", aos 23 e 25. Menos precoce é Gonçalves de Magalhães, estreando no palco, com "Antonio José", aos 27. E José de Alencar, com "O Jesuíta", escrito aos 33 anos, faria figura de macróbio, se não soubéssemos que ele estava antes despedindo-se do que ingressando no teatro.
Esses números, no entanto, bem examinados, revelam-se enganosos.
Os nossos poetas e romancistas passavam cedo pela literatura dramática, mas não chegavam até o palco, a não ser por exceção. Alguns foram logo arrebatados pela morte: Álvares de Azevedo, Castro Alves, Agrário de Menezes. Martins Pena mudou de registro, do dramático para o cômico. Paulo Eiró, coitado, enlouqueceu. Mas mesmo os que não tiveram tropeços fatais acabaram por abandonar a carreira teatral que tinham abraçado com entusiasmo. É o caso de Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar, que sobreviveram por muitos anos aos seus primeiros ensaios dramáticos.
A verdade é que os atores brasileiros, inclusive os de maior renome como João Caetano, dependendo muito da bilheteria, buscavam os seus textos nos melodramas trançados em Paris por mãos habilidosas, com personagens marcantes e sucessivos golpes de efeito (os célebres "coups de théâtre" franceses). Ou então lançavam os olhos sobre os dramas históricos portugueses, que chegavam ao Rio de Janeiro já rodeados de um certo prestígio literário, prontos para serem saudados pela numerosa colônia lusa.
Compreende-se desse modo por que entre as 22 peças aqui relembradas tão poucas hajam subido à cena e por que apenas duas tenham conseguido obter um relativo sucesso de público. "Antonio José ou O Poeta e a Inquisição", de Gonçalves de Magalhães, ficou no repertório de João Caetano, reaparecendo algumas vezes, por seu caráter romântico inaugural, tendo substituído pela primeira vez no Brasil a serenidade majestosa da representação clássica pela variedade do jogo de cena moderno (chamado na época acionado e hoje em dia expressão corporal). "Pedro Sem", de L.A. Burgain, significou uma tentativa, em parte bem-sucedida, de criar em língua portuguesa um melodrama moral à francesa, contendo uma história exemplar e uma lição de fundo religioso. Não será boa literatura, mas para o público era bom teatro.
Nos primeiros tempos, na época heróica de Gonçalves de Magalhães, figura eminente, quase bom filósofo, quase grande poeta, o modelo que persistia ainda era o da tragédia clássica, apenas trincado pelo romantismo. As peças já não se restringiam às unidades de Boileau. Mas fechavam-se enquanto estrutura, não empregando mais do que cinco ou seis personagens, dispostas em plano idêntico e enlaçadas pelo enredo linear, com um só ponto de resolução, colocado se possível no quinto ato (é em "Olgiato" que estamos pensando).
Martins Pena (na sua rápida e prolífica passagem pelo drama) e Burgain expressam a vontade de quebrar esses apertados contornos clássicos, ingressando no teatro comercial pela porta larga do melodrama. Alongam o entrecho, fazendo a sombra do passado repercutir sobre o presente. Aumentam o número de personagens para 20 ou 30, distinguindo três planos: o central, o secundário e o de meia figuração. Expandem o papel do vilão, que passa a ser o eixo do enredo. Viram pelo avesso por três ou quatro vezes a situação dramática, alternando na posição de força ora os protagonistas, ora os antagonistas, criando assim no público medo e expectativa, embora compensados ambos pela certeza de um final feliz. O diálogo, sempre em prosa, recorre a frases ao mesmo tempo óbvias e pomposas, para serem facilmente entendidas e para causarem impressão de profundidade moral. Quanto ao espetáculo, enriquece-se com cenários elaborados, efeitos de luz (com uma certa queda pelo incêndio no horizonte), números de música, canto e dança, tendo por limite a ópera.
Joaquim Norberto (1820-1891), no primeiro ato do seu "Amador Bueno ou A Fidelidade Paulistana" (1), escrito em 1843, não hesitou em colocar no palco um brinde cantado em coro, como se se tratasse efetivamente de uma ópera italiana. Eis a cena:
"Diversos convidados que assistem ao festim, criados que os servem. Uns assentados e outros em pé em torno de uma mesa, já no fim do festim, com copos empunhados e a cantarem (...)
Todos - Os copos enchendo
Provemos
Libemos
O doce licor
Que traz alegria
Que tudo extasia
Desterrando a dor".
Esse é o lado operístico do drama romântico brasileiro. O melodramático não se acha longe no texto de Joaquim Norberto, cabendo dentro de um diálogo, que, mesmo privado do contexto cênico, nada perde de sua carga de mistério, heroísmo e fatalidade:
"- Dizei-me, porém, o vosso nome.
- Tu o saberás, dir-te-ei quando, cruzadas as nossas espadas, a morte esvoaçar em torno de nossas cabeças.
- E a qualidade do duelo?
- De morte.
- As armas?
- Nossas espadas.
- O tempo?
- Amanhã, às 8 horas do dia!
- O lugar?
- Aonde nos encontrarmos.
- As testemunhas?
- Deus e o povo.
- Deus e o povo!"
Ópera, melodrama -tudo em vão! O destino de "Amador Bueno" não foi muito melhor que o dos outros dramas nacionais. O próprio Joaquim Norberto, na introdução à edição da peça, narrou os fatos.
"Foi 'Amador Bueno' um triunfo para seu autor? Abriu-lhe as portas do teatro? Escolhido para ser representado na abertura do Teatro São Francisco em sua restauração, o Conservatório Dramático Brasileiro adjudicou-lhe a preferência sobre outras composições por 15 votos contra 3, em sua sessão de 19 de julho de 1846. No dia 19 de setembro subiu ele à cena, e, no dia 20 do mês seguinte, repetiu a sua representação no Teatro de Santa Teresa, em Niterói. Depois dessas duas representações o primeiro ensaio do autor sumiu-se no meio dos aplausos espontâneos e não preparados de antemão, e foi esconder-se, e para sempre, entre as velhas e decaídas peças do repertório nacional."
O Gonçalves Dias de "Leonor de Mendonça" e o Álvares de Azevedo de "Macário", nem seria preciso dizê-lo, nada têm a ver, a não ser em termos cronológicos, com esse ciclo melodramático e meio operático, que, aliás, na prova de palco, sucumbiu de modo geral como os outros, pela boa razão de que não é melodramaturgo quem quer. Esse dom, do sucesso popular, costuma ser outorgado, pela fada do teatro comercial, unicamente aos habitantes dos grandes centros dramáticos.
As quatro peças deixadas por Gonçalves Dias destacam-se porque são as únicas no Brasil que se movem exclusivamente em torno do amor, tomando na sua vertente mais romântica, a do amor infeliz. Não se trata, portanto, daquele sentimento simples que une dois corações adolescentes e divide as demais pessoas em benfazejas e malfazejas. O conflito, neste teatro, instala-se dentro do amor, não fora dele. Pode até ser o amor pecaminoso, como o de Francisco pela filha em "Beatriz Cenci". Nos outros dramas, a mulher cinde-se entre o amor oficial, ao noivo ou ao marido, e o verdadeiro amor, condenado pelas normas sociais. Ela luta para manter-se fiel à palavra empenhada -pelo pai, quase sempre-, mas acaba vencida por uma força que, contrariada, leva à destruição e à morte. O duque, em "Leonor de Mendonça", mata a duquesa, o rei, em "Boabdil", não só mata a rainha como provoca a queda da cidade de Toledo, o último bastião do poder árabe na Espanha. Há, em tais peças, um pano de fundo histórico, porém mantido à distância, com pouca visibilidade, porque a atenção do poeta volta-se para a dialética do ciúme. O problema do emprego do verso ou da prosa, suscitado no prólogo de "Leonor de Mendonça", resolve-se através do uso da prosa poética, cujo teor lírico contrai-se ou expande-se, diminui ou cresce de intensidade, conforme os acontecimentos mostrados em cena.
Quanto a "Macário", afasta-se não apenas do melodrama, como do próprio teatro. Entre as obras que Álvares de Azevedo cita como afins à sua unicamente uma passou pelo palco -"A Tempestade", das menos ortodoxas entre as peças de Shakespeare. As outras são poemas ou narrativas. Não se aplicam ao texto, portanto, por decisão do autor, as categorias estéticas pelas quais habitualmente se aferem os produtos dramáticos. Enredo propriamente não há e personagens, no sentido costumeiro de continuidade ficcional, também às vezes pouco existem, não restando então, como na poesia lírica, não mais do que o autor e o leitor face a face, defrontando-se em torno de idéias e sensações. Fala-se sobre virgindade (do corpo e da alma), sobre o amor da mãe pelo filho, discute-se a divindade (a sua contraprova chama-se Satã), comenta-se a literatura, que pode ser boa mesmo quando os sentimentos que a nutrem não o são. O poeta desnuda-nos as suas jovens perplexidades metafísicas e artísticas, com o seu protagonista ora em estado de vigília, ora de sonho (e pesadelo).
Chegamos enfim ao drama que tem por objeto a nação ou a nacionalidade brasileira. Já estamos entre 1858 e 1868, decorridos três ou quatro decênios da proclamação da Independência. O nosso romantismo dramático estivera até então ocupado com regiões longínquas, no espaço e no tempo. Gonçalves de Magalhães escreve sobre uma obscura conjuração na Itália; Martins Pena, sobre Vitiza, o Nero da Espanha; Burgain e Teixeira e Sousa, sobre os Cavaleiros Teutônicos; Gonçalves Dias, sobre Patkul, o herói da Livônia, e Boabdil, o anti-herói árabe.
Alguns desses dramas aproximam-se do Brasil, como "Antonio José" e "Leonor de Mendonça", na medida em que decorrem em Portugal. Outros, por exceção, têm o Brasil como cenário. Por exemplo, o "Itaminda" de Martins Pena e o "Cobé" de Joaquim Manoel de Macedo, buscando ambos no palco uma saída para o indianismo, que não se revelará viável; o "Fernandes Vieira" ou "Pernambuco Liberado", de Burgain, peça precursora, sem dúvida, mas contaminada em excesso pelo melodrama; e os dois "Amadores Buenos", de Varnhagen e Joaquim Norberto.
Agora, no início da segunda metade do século 19, cabe a vez ao Brasil. A fórmula do drama histórico já se consolidara. Como núcleo, uma idéia sobre o nosso país, inspirada em algum episódio, verdadeiro ou suposto, da história nacional. À volta dessa imagem primeira, circulam personagens, reais algumas, fictícias a maior parte, cujos conflitos, tanto individuais quanto coletivos, determinam o enredo dramático. O par amoroso é presença constante, mas sem que se atribua ao amor maior importância, a não ser para originar ou incrementar a trama. Na camada exterior da peça figuram pessoas do povo, que fazem um pouco o papel do coro na ópera, como caixa de ressonância dos acontecimentos. Observe-se o que escreveu José de Alencar, defendendo "O Jesuíta" da pecha de só conter diálogos:
"Há muitas cenas de três ou quatro personagens; há cenas duplas; e não faltam para encher o palco cenas, como os fins do segundo, terceiro e quarto atos, que se representam no meio de aparatos de soldados e frades. A última cena especialmente, concertada como exige a peça, deve ser de grande efeito. A religião em toda a sua pompa e solenidade afrontando o poder das armas (2). O povo entra nesses casos para enriquecer o espetáculo e conferir ao que se vê maior alcance social".
Agrário de Menezes, entre os autores estudados, é o que mais recua no tempo. Vai buscar no Nordeste do século 17 um protagonista ambíguo, Calabar, que luta pelos portugueses ou contra eles, porque, mulato, não sabe qual é o seu lugar exato na sociedade colonial. Colhido por suas contradições internas, herói e vilão, só lhe resta, antes de morrer, augurar um Brasil diverso e livre, onde todos os nativos da terra se sintam em casa.
Na ordem cronológica -dos fatos postos em cena, não da feitura das peças- José de Alencar vem a seguir. Em "O Jesuíta" ele postula a existência de um membro da Companhia de Jesus que em meados do século 18 tece durante anos uma conspiração, tendo em vista libertar o Brasil do domínio português. A função da América, segundo essa concepção poética, seria a de abrigar em seu solo generoso os excluídos da civilização européia, como os ciganos e os indígenas. Estes últimos tocavam fundo no coração romântico de Alencar, que via neles a nossa autêntica ancestralidade, pura e nobre. A conspiração fracassa, mas não sem que antes o herói da peça anteveja profeticamente o dia em que o Brasil nascerá enquanto nação. A peça pressagia assim 1822, como a de Agrário já o fizera.
Castro Alves acerca-se mais da Independência. "Gonzaga" ou "A Revolução de Minas", como o título indica, aborda a Inconfidência Mineira, que em 1789 ousou realmente sonhar com a nossa emancipação política. Escolhendo um poeta para protagonista, o autor incorporou ao seu universo dramático o prestígio da literatura. E, ao contar a história de um negro liberto que após muito tempo reencontra a própria filha, escrava que tem de trabalhar contra a revolução pela qual o pai se bate, traz ao primeiro plano a Abolição, o tema social que começava a ocupar polemicamente o centro das atenções nacionais.
Já "Sangue Limpo" encara o 7 de Setembro -mas não de frente, de esguelha, se assim podemos dizer, dado que nessas peças era de praxe manter-se um certo recuo artístico perante a realidade histórica. D. Pedro 1º desfila em cena, porém não mais do que como uma silhueta que atravessa o fundo do palco ao fechar-se o espetáculo. O seu gesto emancipador, no entanto, está desde o início no pensamento de todos, portugueses e brasileiros, como uma possibilidade que diz respeito ao destino particular de cada um. Paulo Eiró, o mais avançado destes escritores no plano das idéias e das aspirações igualitárias, não se contenta com a Abolição. Deseja que se faça abertamente, através do casamento, a fusão das duas raças, a branca e a negra, que para ele constituem a base da nacionalidade. O Brasil não seria ele mesmo, não se unificaria, enquanto não repudiasse a noção ibérica de sangue limpo, que pressupõe, como oposto, o conceito odioso de sangue sujo.
O drama histórico nacional nunca esteve isento de contaminação com o melodrama. Mas o diálogo que os autores estudados sustentavam fora de cena, em cartas, artigos, notas, já era com o teatro realista. A ambiciosa perspectiva romântica, que não se pejava de incluir reis e heróis entre as suas personagens, cedia lugar a uma visão mais curta, próxima do cotidiano, ligada a uma espécie de verossimilitude fácil de avaliar. O dinheiro, em suas relações com o amor e o casamento, entrara no palco nacional através de peças de José de Alencar, como "O Demônio Familiar" e "O Crédito".
Nesse sentido a obra dramática de Agrário de Menezes, Paulo Eiró e Castro Alves pode ser considerada como o produto de escritores retardatários, que, morando na província, longe do Rio de Janeiro, o nosso centro literário, não tinham acompanhado devidamente a evolução do teatro. Se isso é verdade, ou parte da verdade, não é menos certo que somente o drama romântico, por sua abertura de forma e conteúdo, dava-lhes condição de discutir a essência da nacionalidade. A contraprova é que Alencar, quando pensou em celebrar a data da Independência, recorreu ao drama histórico, aliás em termos romanticamente utópicos. Por outro lado, o temperamento literário de alguns desses escritores, se não de todos, prestava-se melhor ao campo do ideal. É difícil imaginar, por exemplo, Castro Alves dedicando-se ao namoro, ao casamento ou mesmo ao adultério burguês. O dilatado e por vezes fantasioso espaço histórico era-lhe necessário, tanto quanto o uso livre da metáfora. Em suma, o romantismo principiava a passar, mas desempenhava ainda uma função insubstituível na ficção brasileira: a de abrir ao dramaturgo uma realidade poética de vastos contornos humanos.
Se considerarmos agora o drama romântico brasileiro como um todo, concluiremos que a idéia de liberdade, modulada de diferentes maneiras, é a nota dominante, estando no seu princípio e no seu fim. Com Gonçalves de Magalhães ela é posta em cena como um princípio universal, que não se relaciona com o Brasil se não indiretamente: a liberdade contra a tirania política em "Olgiato", a liberdade contra a tirania religiosa em "Antonio José ou O Poeta e a Inquisição". Nas duas peças ela é concebida como condição "sine qua non" do desenvolvimento social, expresso pela filosofia, súmula e coroamento do saber humano. Tal preocupação literária, não é preciso acrescentar, coincide historicamente com a luta entre liberalismo e absolutismo, que dividiu sangrentamente Portugal e Espanha, chegando de forma atenuada ao Brasil.
Para os escritores seguintes, Martins Pena, Burgain, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, a questão não se coloca. A liberdade dentro do país parecia assegurada e a data de Independência não se afastara ainda o suficiente para que se tornasse matéria artística. O romantismo toma outros caminhos, o melodramático, o lírico, o fantástico.
A idéia de liberdade retorna com mais força, vinculada sem disfarces ao Brasil, à medida que a sociedade, um tanto às cegas, encaminha-se para a Abolição de 1888. José de Alencar propõe uma fórmula vaga e genérica: que se receba na América os rejeitados pela Europa, especificando os ciganos e os indígenas. Agrário de Menezes levanta como problema a situação anômala do mulato, intermediário entre o branco e o negro (tema tratado por Alencar no drama realista "Mãe"). Castro Alves já é um abolicionista declarado e ardente. Paulo Eiró vai além: que se faça sem hipocrisias e constrangimentos a fusão entre brancos e pretos. Naturalmente essa ordem não é a cronológica, nem presume que haja entre tais peças relações de causa e efeito. O que ocorre é apenas o crescimento do pensamento abolicionista, que no final do século, a rigor fora dos limites estéticos do romantismo, empolgará a consciência nacional. A igualdade jurídica estende-se finalmente a todos os brasileiros, eliminando a contradição de um país que se proclama livre, negando esse direito a uma parte de sua população.
O conceito de liberdade surge igualmente na forma da peça. O modelo da tragédia clássica francesa, que ainda transparece em Gonçalves de Magalhães, firmava-se sobre a economia e a concentração: num só dia e num só lugar, um só fato dramático (segundo a formulação de Boileau). O drama romântico alarga esses limites, podendo abranger anos inteiros e somar mais de um enredo. Em casos extremos, como o de "Macário", perde a própria noção de centro, tornando-se, no sentido exato, excêntrico. Algumas personagens são somente nomeadas de passagem e o espaço e o tempo são propositadamente incertos. Perante essa liberdade autoral, a dramaturgia realista, sucedendo à romântica, significa um retorno à disciplina, à centralização, ao fechamento da matéria dramática em contornos bem definidos. Não se volta às unidades clássicas, interpretadas ao pé da letra, mas também já não se concede ao autor tanta liberdade de composição.
Para terminar: se disséssemos aos autores românticos, ou a quaisquer outros do século 19, que a arte se relaciona apenas consigo mesma, não possuindo valor moral (no sentido largo da palavra), correríamos o risco de não sermos nem sequer compreendidos. O teatro ocidental nasceu na Grécia, com a tragédia e a comédia servindo de guia à sociedade. Mostrou depois várias outras faces, dessemelhantes entre si, mas sem nunca cortar o cordão umbilical que o prendia à realidade. Os românticos não vieram para recusar esse elo. Desejavam um teatro aberto, que representasse o homem em toda sua multiplicidade, incluindo na obra de arte, ao lado do político e do nacional, o grotesco, o sonho, o devaneio, o pesadelo (como em Álvares de Azevedo). Mas não eram solipsistas, não pretendiam, como parte da estética do século 20, abolir o mundo para que o artístico pudesse brotar livre de impurezas humanas.
Filosofar consiste em indagar qual é a natureza das coisas e quais são os limites do homem. Perdoemos a literatura romântica se ela também, à sua maneira, com os instrumentos privativos da arte, tentou responder a algumas dessas questões eternas.

NOTAS
1. Joaquim Norberto de Sousa e Silva, "Amador Bueno ou A Fidelidade Paulistana", Empresa Tipográfica de Paula Brito, Rio de Janeiro, 1855.
2. José de Alencar, "Teatro Completo 1", Serviço Nacional de Teatro, Rio de Janeiro, 1977, pág. 167.

Texto Anterior: RADUAN NASSAR; FILOSOFIA; AFRÂNIO COUTINHO; POLÍTICA; ISLÃ; DELEUZE; ARTE; CINEMA; PSICANÁLISE; VIENA; LANÇAMENTO; REVISTA
Próximo Texto: Lançamento acontece amanhã
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.