São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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Do 'pulp fiction' à saúde mental

DA "DETAILS"

Pouco tempo atrás, quando perguntei a dirigentes da Cientologia se eu poderia ver qual era a sensação de participar de sua igreja, eles hesitaram muito antes de permitir. Como em todas as fés, acreditam que se tivermos uma única oportunidade de enxergar a verdade também nos tornaremos crentes.
"Ninguém recebeu autorização para tanto acesso até hoje", disse o publicitário, lisonjeando-me. Isso não é estritamente verdadeiro; jornalistas e sociólogos já foram recebidos antes, na esperança de que fizessem propaganda benéfica. É uma estratégia arriscada; é fácil ridicularizar os obscuros meandros de qualquer fé, especialmente uma tão temida quanto a Cientologia. Seus adversários foram intimidados por meio de ações judiciais e campanhas pelo correio e alegam ter sido vítimas de golpes sujos. Em 1982 a mulher de Hubbard e dez outros importantes cientólogos foram condenados a cinco anos de prisão por terem invadido repartições do governo e roubado milhares de documentos sobre a Cientologia. Líderes da igreja afirmam que a ação foi cometida por alguns desorientados, que foram expulsos da igreja há muito tempo.
Algumas semanas depois, Tom Davis, assistente do presidente do Centro Internacional de Celebridades e filho da atriz Anne Archer, leva-me ao terraço no sexto andar do edifício. Ele aponta para o renque de palmeiras do Hollywood Boulevard, que 60 anos atrás delimitava o enorme terreno da Cientologia, antes que a cidade o engolisse. "Era uma propriedade e tanto", diz Tom, orgulhoso.
É o tipo de prédio que fascina Hollywood, cheio de lendas do mundo das estrelas. Terminado em 1929, foi um presente para a viúva de um grande e esquecido pioneiro da indústria do cinema, Thomas Ince, que ajudou a criar a western e construiu um dos primeiros estúdios em Culver City. Assim como na época de sua construção, o prédio proclama a riqueza exibicionista dos arrivistas.
Tom e eu descemos de elevador até o porão. Perto do hall há um grande escritório vazio com uma mesa lúgubre no centro. Há rosas vermelhas frescas. Pousada na mesa, uma grande pluma branca para escrever, numa referência cafona à erudição. E uma grande placa de ouro gravada anuncia o ausente: "L. Ron Hubbard, fundador". Em todo grande escritório da Cientologia no mundo há uma mesa vazia à espera dele. "Não que a gente ache que ele vá voltar e de repente se sentar em sua cadeira", discursa Tom com a voz comovida, a menos que eu me engane. "É um tributo a alguém que consideramos um grande homem."
Nas décadas de 30 e 40, Hubbard, a verdadeira estrela de "pulp fiction", era um bem-sucedido produtor em massa de histórias de caubóis e ficção científica para revistas como "Astouding Science Fiction". Em 1950 sua imaginação parece ter-se fundido com a realidade, quando publicou "Dianetics: The Modern Science of Mental Health" (Dianética: a Ciência Moderna da Saúde Mental), a primeira flor da indústria da auto-ajuda no pós-guerra.
No livro ele anunciava que todos poderíamos nos libertar das aberrações e psicoses se enfrentássemos os incidentes traumáticos que criam em nossas mentes os bloqueios, ou "marcas", da memória ("engrams"). Em quatro anos essa psicoterapia transformou-se na igreja da Cientologia, ordenando ministros e realizando serviços. O culto havia se elevado à categoria de religião. Mas isso também significa que, como em qualquer religião, ela encerrava em seu cerne uma magia: ao executar os rituais da "tecnologia" religiosa de Hubbard, um fiel seria capaz de transformar o mundo.
A Cientologia sustenta que somos almas puras, seres espirituais chamados de "tetanos" ("thetans"), ameaçados pelos "engrams". Na medida em que a terapia se transformava em religião, o problemático "engram" foi gradativamente ganhando um teor místico. Os "engrams" não eram apenas produtos desta vida, mas também de vidas passadas, remontando a milhares de anos. Apenas uma extensa série de cursos conhecida como "treinamento" e "auditoria" poderia realmente libertar a pessoa (a auditoria tornou-se na essência uma espécie de exorcismo). A consciência aplicada finalmente atinge os Níveis Operativos Thetan -ou Níveis OT- ao se fazer os cursos mais avançados, de conteúdo secreto. Os ex-membros mais vociferantes e desiludidos estimam que, com o preço dos livros, vídeos e equipamentos exigidos, poderia facilmente custar mais de US$ 100 mil atingir o nível mais alto hoje disponível: OT 8.
O mundo secular de Hubbard tem uma hierarquia igualmente elaborada. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele serviu como tenente na Marinha e apaixonou-se pela burocracia naval. Durante algum tempo a Cientologia foi dirigida a partir de uma flotilha de iates chamada Organização Mar (Sea Organization). O corpo diretivo da igreja, hoje mais orientado para a terra, ainda é chamado de Org Mar; seus membros usam uniformes e têm patentes navais.

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