São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 1996
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Candidato majoritário precisa de milhões de votos

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

O candidato majoritário precisa de milhões de votos. Ele foi um menino que lutou com dificuldades, mas acabou vencendo na vida. Ele ama o trabalho, jamais traiu a mulher e, dependendo da conjuntura, traiu uma vez mas voltou e superou a crise matrimonial.
O candidato majoritário jamais fumou maconha. Se fumou, não gostou, ou então, não tragou. E isso foi sempre há muitos anos.
O candidato majoritário acredita em Deus, pode não ser o seu Deus, mas ele acredita em algum Deus. Porque o candidato majoritário não pode existir sem acreditar em algum Deus.
O candidato majoritário nem precisa ser contra uma lei que permita a união de pessoas do mesmo sexo. Basta dizer que isso não é um problema urgente, que, agora, o país precisa de (dedo se abrindo) saúde, educação, transporte, segurança, emprego (mão aberta, dedos separados).
Não basta ao candidato majoritário ser simpático na TV. Tem de ter um brinquedo virtual, um trenzinho, um metrô, um veículo não identificado.
O candidato majoritário, nesse ponto, tem uma infância mais animada que a nossa: só aparece com um brinquedo, encarnando uma autoridade maior que a do dono da bola, nas peladas de menino.
O candidato majoritário tem sempre por trás dele uma equipe e um mago que preparam, juntos, o ritual de sua aparição. Como você se chama? Crisóstomo Arantes. Chamava: agora, é o Arantes.
O candidato majoritário torna-se multidimensional. Seu perfil à contraluz, rápidos cortes o mostram em movimento. Ele pode também se transformar num só símbolo: um trevo de quatro folhas, um coração, uma vassoura.
O candidato majoritário não gosta de maquiar, mas vocês é que são os técnicos: acham que é preciso mesmo? Ele usa camisa branca ou azul na rua, mas recebe uma lista das cores proibidas para posar diante do cenário.
O candidato lê textos com tanta convicção como se houvesse ele mesmo os concebido. Ele está sempre rindo, embora o intestino nem sempre o acompanhe.
Sim, porque há os jantares, os pastéis, as coxinhas, as buchadas de bode. O candidato tem apetite, gosta de tudo.
O candidato se relaciona com a pesquisa como os machões diante de sua própria virilidade: caiu, não caiu, subiu, não subiu? "Pode deixar que vai subir", confortam os amigos.
"Sinceramente, não entendo por que caiu", diz ele. Talvez esteja apenas um pouco nervoso, cansado. Mas também quem era ela, essa pesquisa? Fajuta, piranha, no fundo quer mesmo é me prejudicar.
O candidato majoritário tem um quê de mecânico, desses que nos maravilham com o diagnóstico da pane no carro: da biela, parafuso da ribombeta. "O problema da habitação só será resolvido com lotes unitários de uso multifamiliar, essa é a proposta do meu governo."
O candidato dorme e acorda com os cabos eleitorais na porta, bandeirinha, seguranças. Os vizinhos dizem para os jornais que gostam dele, que é uma boa pessoa, mas no fundo pensam que seria ótimo se tudo isso acabasse logo.
E acaba. No dia da eleição, corpo-a-corpo, boca de urna, algumas vaias, mas isso é coisa de militantes pagos pelo adversário, ele sabe. E no fim da tarde consulta o relógio, acabou, está acabando? Acabou.
Ele volta para casa, pega as malas, sai pelos fundos e vai descansar bem longe. Na verdade, teria de acompanhar a apuração na cidade, mas com as primeiras urnas, já vai ficar sabendo se ganhou ou não: se ganhou, volta, se não ganhou, mergulha de novo.
O meu, o seu, o nosso Arantes (sobe som do jingle), aquele que realmente faz (takes de pôr-do-sol, meninos maltrapilhos na rua, um grupo enrolado na bandeira brasileira subindo a rampa do Congresso), emergindo do fundo do mar, suplica: por favor, me chamem de Crisóstomo.
O cabelo ainda está escrupulosamente cortado, a barba não cresceu, é um homem comum, um filho de Deus, desses que a multidão leva ao poder, para ter um pouco de paz e contemplar, aos domingos, monstros, prodígios, lobisomens, mulher de barba, menino cheirando cola, menina se prostituindo.
Subiu, não subiu, caiu porquê? Candidatos com sua patológica normalidade, programas de auditório com seus freaks, todos estão mergulhados na batalha dos números.
Um dia, esses mundos convergirão definitivamente: programas eleitorais de auditório mostrarão animadores absolutamente corretos em luta contra anões, xipófagos e anacoretas. Caçaremos à bala todos que se opõem ao único ponto programático que nos mantém de pé nas olimpíadas dominicais: vale tudo por dinheiro.

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