São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 1996
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O pós-tucanato

EMIR SADER

Como as pesquisas sobre o voto municipal e aquelas que apontam queda vertical da popularidade do presidente e maioria contra sua reeleição evidenciam, o pós-tucanato pode estar muito mais perto do que os 20 anos preconizados por Sérgio Motta. O que virá depois?
Tem sido assim: depois de tirar as castanhas com a mão do gato, por meio de um drástico ajuste fiscal, da desregulação econômica e do desmonte do aparelho produtivo nacional, os social-democratas que assumiram os preceitos neoliberais deixam o campo aberto para a direita tradicional. Foi assim na França, com Mitterrand, sucedido pelo conservador Jacques Chirac, na Espanha de Felipe González, substituído pela direita de Aznar, enquanto em países como o México é a direita tradicional do PAN quem melhor tem capitalizado o desgaste do PRI, em lugar do PRD de Cuahutemoc Cárdenas.
Entre nós, a direita tradicional ameaça despontar de novo. Maluf deixou de ser aquele que "adorávamos odiar", o PFL mostra capacidade de cooptar trânsfugas da esquerda, como no Rio de Janeiro, a direita mais uma vez se apresenta como quem, de maneira mais confiável do que os tucanos "parvenus", pode garantir um programa de direita. Afinal, eles não são de direita de ontem.
Sarney, Marco Maciel, ACM, Inocêncio de Oliveira são a própria cara da direita. A retomada da aliança com Maluf -se este aparecer como forte candidato à sucessão de FHC- terá feito da chamada "transição democrática" apenas um parêntese em sua longa trajetória de exercício do poder. "Virada a página do getulismo", isolada e derrotada a esquerda, as rédeas voltarão diretamente para quem de "direita".
A conversão neoliberal é duplamente proveitosa para as forças conservadoras: outros, em princípio insuspeitos de negligenciar as políticas sociais, fazem o "trabalho sujo" de reprivatização das relações sociais, deixando a esquerda isolada e, por isso, com maiores dificuldades para disputar a sucessão dos social-democratas.
Mitterrand frustrou o sonho de um governo de esquerda do pós-guerra na França. Foi preciso terminar seus mandatos para que os movimentos sociais voltassem a sair às ruas com força, derrotando a contra-reforma da previdência de Chirac. Felipe González tem sobre si o ônus de deixar o desemprego chegar a um de cada quatro espanhóis, em meio à modernização econômica para quem conseguiu se engatar ao trem da reconversão.
FHC nem sequer terá essa transcendência: no máximo aparecerá como o prestidigitador da estabilidade monetária, aquela que, apoiada em taxas de juros estratosféricas, multiplicou por três as dívidas do Estado, deteriorou como nunca os serviços sociais, levou à quebra a indústria nacional e formulou álibis para a direita tradicional se reconverter à "modernidade".
A esquerda não soube, até aqui, apresentar um projeto hegemônico alternativo, centrado no mercado interno de massas, na democratização radical do Estado, na socialização da política, na integração internacional das grandes potências excluídas pelo hemisfério Norte. A construção de um novo consenso nacional -solidário, humanista, ético, social- depende de um projeto dessa ordem, para que o pós-tucanato não signifique um novo pacto de elite, que renove as forças conservadoras, em um país que tanto requer profundas transformações sociais, políticas e culturais.

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