São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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Ana Lúcia

JORGE DA CUNHA LIMA

Ana Lúcia é uma moça mineira que melhor poderia ter sido retratada por Portinari ou mesmo por um verso de Carlos Drummond de Andrade. Se o faço, é para não me recolher num anonimato solidário, em hora tão adversa. Ana Lúcia devota uma afeição mineira à família.
Quando seu pai se reduziu à imobilidade, depois de anos de grande agitação política, ela o visitou diariamente, até a morte, o que não é comum numa sociedade que relega os velhos, no máximo, a uma solidão confortável. Com grande fortuna desde criança, não se pode dizer que fosse especialmente devotada a questões financeiras nem mesmo que tivesse pendor para tanto.
Mas se quiséssemos extrair dela outras sabedorias, a do inconsciente e do sonho, ela estaria duplamente disponível, enquanto psicóloga ou como alguém que tem um amor visceral pelo cinema.
De debêntures não entende nada, mas, se você quiser saber como um jovem americano amargou a tragédia americana, ela lhe indicará o filme de Montgomery Clift e de Elizabeth Taylor, e, se você quiser saber de onde surgiram esses cavaleiros do apocalipse que dominam a mídia em todo mundo, ela poderá lhe emprestar um vídeo de "Cidadão Kane".
Não lhe é desconhecida a escada do "Crepúsculo dos Deuses". Ela conhece o cinema, essa insuperável geografia dos mitos. E esses pendores ela sempre os exerceu publicamente, em favor dos pacientes e dos milhares de jovens que frequentaram as cinematecas do Banco Nacional.
Ana Lúcia só foi ser conselheira do Nacional por amor ao cinema, pois nem é muito da tradição das famílias mineiras a gestão feminina dos negócios. Entendia de marketing e sabia que a cultura é a melhor alavanca institucional existente e que o cinema é o espaço privilegiado da cultura, mais que a própria televisão.
É possível que o delegado que a indiciou no mês de agosto sinta-se um herói, ou mesmo que o tenha feito por formalismo, perante uma lei que não permite distinguir um réu reles de um cidadão inadvertidamente envolvido em suspeição.
A Justiça brasileira costuma apegar-se mais ao conforto de uma condenação formal do que à ética de condenar uma evidência. Por isso tem tanto malandro solto enrolando o colarinho branco numa gravata do Hermés. Mas não desejo julgar o delegado, nem a lei, nem o Judiciário, nem um Estado que tem a obrigação de zelar pelo sistema financeiro, industrial, agrícola, educacional, médico e pela segurança do cidadão, pois essas não são tarefas do livre mercado.
Não quero julgar ninguém, nem os irmãos que poderiam tê-la poupado desse conselho. Quero reverenciar publicamente um caráter. E sei que não estou sozinho nessa reverência. Os próximos nem preciso falar, a família a conhece de perto, nesse juízo do cotidiano que é insubstituível.
Não tenho procuração de ninguém, mas os amigos também. Tenho a certeza de que o Jabor, o Cacá Diegues, a Glorinha Kalil, o Miguelzinho Faria e centenas de pessoas que se dedicam à criação estão comigo nessa apreciação, e até mesmo alguns jornalistas que gostam de usar a caneta como um laudo pericial já tiveram a singeleza de isentá-la desse processo.
Filho que sou da imprensa, busco sempre zelar por essa mãe travessa, por isso mesmo não entendo que quase todos os jornais do país, mesmo os mais austeros, tenham preferido a circunstância à identidade. Na notícia do depoimento, sempre a trataram como nora e não como pessoa. A nora do presidente. Pois eu quero chamá-la neste artigo pelo nome, que nela continua honrado: Ana Lúcia Magalhães Pinto.

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