São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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Crônica do tempo em que a colônia virou metrópole

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"D. João 6º no Brasil", de Oliveira Lima, publicado pela primeira vez em 1908, ressurge em uma primorosa terceira edição da Editora Topbooks.
O livro trata de um episódio inusitado: a mudança da corte de um país europeu, com seus aristocratas, funcionários, clérigos, criados etc. para a capital de uma de suas colônias. Instalada a família real no Brasil -enquanto Portugal era ocupado pelas tropas francesas e a seguir se convertia na prática em protetorado inglês- criou-se uma situação pela qual os pólos foram trocados, pois "a colônia virou metrópole e a metrópole virou colônia". Depois dessa temporária reversão, o Brasil nunca mais seria colônia, embora jamais chegasse a ser metrópole.
Os 13 anos de permanência de D. João 6º no Brasil (1808-1821) se caracterizaram por uma série de elementos importantes, de qualidade diversa: urbanização do Rio de Janeiro, política externa agressiva na Guiana Francesa e especialmente no Prata, revolução pernambucana de 1817 etc.
A presença da corte de Bragança no Rio de Janeiro contribuiu para fazer da Independência brasileira, para bem e para mal, um processo de transição transada, inaugurando uma série de outros como a Abolição e a República, no âmbito do século 19. Desse modo, o Brasil se converteu em uma monarquia entre repúblicas no contexto latino-americano e conseguiu evitar as lutas que marcaram os países vizinhos.
O livro de Oliveira Lima trata de reabilitar a figura do príncipe regente e depois rei, contrariando uma historiografia superficial que o caricaturou por seus traços mais evidentes de glutão e de vítima das aventuras e maquinações da rainha Carlota Joaquina. O autor conseguiu reunir uma sólida base de fontes primárias, valendo-se de sua condição de diplomata, a partir da qual retifica a imagem negativa do rei que não se limitou a devorar frangos e a assistir displicente às transgressões comportamentais de sua mulher. Surge das páginas do livro um D. João 6º modernizador, no marco do conservadorismo luso, hábil no trato com seus ministros e com os líderes das grandes potências, mais calculista do que se afirma no episódio de sua fuga para o Brasil.
Nem por isso Oliveira Lima embarca em uma idealização dos tempos do rei português, dizendo que, na área administrativa, essa foi uma era de muita corrupção e peculato. Contrasta o período com o da Independência quando -segundo afirma- soprou um forte vento regenerador e surgiram homens devotados desinteressadamente à causa pública como foram os Andradas.
Ao reconstruir os episódios históricos e a engrenagem da corte, Oliveira Lima fica nos limites da boa história narrativa de tipo tradicional. Mas seu texto não se reduz a este aspecto porque outra abordagem nele se insinua, aproximando-o dos caminhos da nova história, da antropologia e da sociologia.
Essa abordagem se explicita no esforço de reconstituir a vida cotidiana e as características sociais da colônia, sobretudo do Rio de Janeiro. Mais ainda, Oliveira Lima demonstra um particular interesse pelos setores dominados da sociedade, com uma visão permeada de preconceito e fascínio que o aproxima de um seu contemporâneo -João do Rio- a quem aliás cita expressamente.
Em sua apreciação de negros e índios, o preconceito é gritante. No breve capítulo em que trata da política joanina e a questão indígena, busca justificar as deficiências da ação governamental, tendo em vista as características raciais dos índios. Depois de dividi-los em "selvagens bravios" e "aborígenes mansos", assinala a dificuldade de integração dos últimos porque "embora jeitosos e capazes de desempenhar certos misteres, dominava-os uma invencível preguiça". Quanto aos negros, refere-se às suas "grotescas e terríveis superstições" e à sua "condição de primitiva selvageria", ao serem trazidos da África.
Não obstante o preconceito -comum em seu tempo e que não desapareceu nos dias de hoje-, subsiste o caráter inovador do texto, como se evidencia no retrato, ou melhor, nos retratos do Rio de Janeiro. Oliveira Lima contrapõe o Rio de Janeiro anterior à chegada da família real e o que veio depois, de uma forma nada convencional.
O que era a capital da colônia em março de 1808 quando o então príncipe regente aí desembarcou? Uma cidade mesquinha, "de ruas estreitíssimas, lembrando mourarias, onde se acotovelavam escravos, ciganos saídos não se sabe de onde e mendigos sórdidos". Afora o núcleo central pouco ou nada existia, e bairros aprazíveis como o Catete e o Botafogo -Oliveira Lima escreve no começo do século- não eram senão arrabaldes quase vazios. No ambiente acanhado, nem mesmo os mais ricos tinham diversões dignas desse nome. Estas se limitavam ao jogo do gamão à noitinha, antes da ceia, em espaços improvisados das lojas; ou, quando muito, a espetáculos teatrais de péssima qualidade, em um velho casarão iluminado a azeite.
O autor contrasta estes traços com os que caracterizaram o tempo do rei. Descreve as solenidades da corte, as procissões -instrumento de socialização feminina-, a entronização de uma certa etiqueta cortesã, os concerto musicais, as novas edificações. Talvez nada simbolize melhor essa transformação do que uma medida aparentemente secundária: a substituição das gelosias de madeira por janelas de vidro que aproximaram o mundo da casa do mundo da rua.
Ao mesmo tempo, Oliveira Lima não adere a uma visão simplificadora de progresso, assinalando o caráter contraditório da transformação urbana, em vários planos. Lembra a queixa dos diplomatas estrangeiros pela carestia de vida, reclamando da alta dos aluguéis das casas e dos salários dos criados, como resultado da maior procura decorrente da vinda da família real. Lembra a falta de segurança, "efeito da alteração da vida coletiva", que se converteu "em uma das feições piores da existência fluminense", pela multiplicação de assaltos noturnos perpetrados por quadrilhas de negros armados.
Por outro lado, o autor lança uma mirada, a partir de seu tempo, em direção a um Rio de Janeiro com forte presença negra, que foi perdendo essa característica após a extinção do tráfico, associada ao aumento da imigração européia e da mestiçagem. Uma cidade por cujas ruas passavam vendedores de arruda, que as negras compravam para se preservar de feitiçarias, barbeiros ambulantes armados de medonhas navalhas, mulatas de vida airada em carruagens ou cadeirinhas de aluguel, ruidosos funerais de filhos de um rei africano, em um constante movimento popular de "negra algazarra e negra alegria".
O tom eufórico é cortado pela constatação de que reinava na capital uma forte apreensão de um levante negro, seja porque a insurreição do Haiti era relativamente recente, seja porque as notícias de tumultos raciais ocorridos em Salvador eram intranquilizadoras.
Como se vê, Oliveira Lima lida com a festa, o crime, as tensões raciais, os sentimentos da população, "o espetáculo das ruas" tornando-se, por essa via, um precursor não só da ciência social brasileira esboçada a partir dos anos 30, como da temática contemporânea.

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