São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 1996
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Receitas básicas

JOÃO SAYAD

Inflação menor do que 1%, déficit comercial aceitável, o desemprego é mudança na natureza do emprego. Chegou a primavera com uma florada de boas notícias.
Quanto tempo dura um tempo tão bom?
Economistas diferentes dizem coisas diferentes.
Alguns dizem que a manutenção das boas notícias depende da redução do déficit público e, portanto, da reforma do Estado, da reforma da Previdência Social, da privatização e da reforma da CLT.
Outros, que as boas notícias permanecerão se o déficit em transações correntes for reduzido e para isso é necessário mudar a taxa de câmbio e reformar a CLT e a Previdência.
Finalmente, outros dizem que tudo depende da redução do "custo Brasil".
Economia é uma arte, como a culinária. O segredo da culinária é o capricho. Um misto quente feito com capricho é mais saboroso e delicado do que um bife à Bourguignone de cadeia de fast food.
A arte de dar palestras dos macroeconomistas, além de capricho, depende de uma receita básica: divida a economia em setores -governo, setor privado e resto do mundo. Ou em classes: trabalhadores e capitalistas.
Depois, lembre que cada setor ou classe produz um determinado volume e consome um volume diferente, maior ou menor do que o que produziu. A diferença se chama poupança. Quem produziu mais do que consumiu e, portanto, poupou, precisa ser recompensado por quem fez o contrário, isto é, despoupou.
A partir dessa receita básica, pode-se preparar o discurso mais conveniente ou a recomendação mais agradável para a platéia ou o tempo em que estiver vivendo.
1) Platéia neoliberal de oposição.
O governo consome mais do que produz, tem déficit público. Quem consome menos do que produz para compensar a diferença? O resto do mundo. Por isso temos déficit em transações correntes, ou seja, por isso precisamos que os estrangeiros mandem mais produtos para o Brasil (nossas importações) do que o volume que mandamos para eles (nossas exportações). O déficit público é culpado pelo déficit em transações correntes. Recomendação: demissão de funcionários e reformas da Constituição para diminuir o déficit. Culpado de tudo: o governo.
2) Discurso de autoridade do governo.
O Plano Real redistribuiu renda por causa do fim do imposto inflacionário. Tradução: os brasileiros agora podem consumir mais do que produzem, ou seja, despoupar, porque o ambiente favorável atrai poupança do resto do mundo para compensar o consumo maior dos brasileiros.
3) Seminário do MDB sobre distribuição de renda, em 1983.
Adicione a hipótese de que os trabalhadores gastam tudo o que ganham e os capitalistas ganham o que gastam, isto é, os lucros são iguais a tudo que foi produzido e não consumido.
Os megasuperávits comerciais da época são produção nacional que não é consumida e, portanto, são lucros. Conclusão: a distribuição de renda se agrava (os lucros crescem em detrimento dos salários) porque exportamos mais do que importamos e a diferença, o superávit comercial, pertence aos estrangeiros donos da dívida externa ou aos capitalistas que produziram o excesso de dólares que não foi pago em salários.
4) Discurso para o pessoal da saúde e da educação.
Reduzir o déficit público à custa dos gastos sociais é inaceitável. Precisamos diminuir as despesas com juros (e, portanto, contar menos com a poupança dos estrangeiros) e aumentar os impostos (e, portanto, tirar uma parte da produção privada e transferir para os gastos na área social).
5) Discurso para exportadores que reclamam da taxa cambial.
Precisamos reduzir o "custo Brasil" pela flexibilização da CLT e reforma da Previdência Social. Tradução: precisamos baixar os salários para que o câmbio continue constante e, mesmo assim, possamos produzir mais para exportar.
6) Platéia eclética. Discurso prudente: é preciso aumentar a poupança. Não especifique de que grupo nem quando.
A partir da receita básica, o macroeconomista bom palestrante não deve ter dificuldade alguma em sugerir o remédio mais atraente ao interesse da platéia. Na dúvida, pode esconder muito bem a ideologia que orienta duas recomendações sempre com a mesma receita básica.
Em resumo, é muito fácil dar palestras de macro. Difícil mesmo é decidir sobre políticas que afetam salários e emprego em um país de tantos pobres nestes anos gloriosos da globalização que estamos vivendo.

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