São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 1996
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D. Paulo e a modernidade

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

No dia 15/9, domingo, dois artigos nesta mesma página 1-3 homenageavam duas grandes personalidades brasileiras desta segunda metade do século: d. Paulo Evaristo Arns, que completava 75 anos, e o presidente Ernesto Geisel, falecido. Curiosa coincidência colocar lado a lado dois homens que lutaram de lados diferentes, mas que, afinal, tiveram pontos básicos em comum: honestos, corajosos, voltados para o serviço público.
Sou amigo pessoal e admirador de d. Paulo. É um grande bispo da igreja. É um homem de cultura e de poder. Trabalhei com ele durante vários anos, em duas ocasiões: primeiro, no Conselho de Administração da PUC, ainda nos anos 70, e depois, até vir para o governo Fernando Henrique Cardoso, no Conselho de Administração da Cúria Metropolitana de São Paulo. Conheço-o bem. Sei como é capaz de caminhar contra a corrente e desafiar os poderosos quando necessário. Mas sei também como é prudente, hábil e determinado em suas ações.
Não há nada que mais dignifique o ser humano do que sua dedicação à causa pública. D. Paulo e Geisel se notabilizaram por esse fato, mas de uma forma diferente. O ex-presidente tinha como critérios fundamentais para sua ação o poder do Estado e o desenvolvimento econômico. Quando iniciou o programa de "distensão" política, em 1974, o fez em nome de sua própria demanda de governabilidade.
Quando começou a apresentar problemas, não teve dúvidas em fechar o Congresso. Depois voltou ao programa de liberalização política, que passou a ser denominado "abertura".
Mas sua abertura era controlada, protelatória, uma estratégia de manter sob controle as demandas da sociedade, que haviam recrudescido depois do seu Pacote de Abril, de 1977. E afinal não teve convicção democrática suficiente para tentar passar o poder para um civil, por meio de eleições democráticas, como provavelmente poderia tê-lo feito. Contribuiu, sim, para a transição democrática, à medida que representava a linha branda dos militares, em contraposição à linha dura.
E teve a grandeza de terminar com a tortura, que dominava os serviços de segurança militares. Mas afinal a linha branda não "ofertou" a redemocratização à sociedade, como alguns escreveram. Na verdade, foi uma conquista da sociedade. O fato novo fundamental que levou a ela foi o rompimento das elites empresariais com o regime militar, ocorrido a partir de 1977.
Em relação a d. Paulo, seus compromissos sempre foram claros e precisos. Nunca teve dúvida de que a modernização (o "aggiornamento") da igreja e sociedade brasileiras são fenômenos semelhantes. A igreja, antes de João 23, era retrógrada e autoritária, desligada dos movimentos emancipadores da sociedade; o Brasil continua a ser um país dramaticamente marcado pelo desequilíbrio e a injustiça social, que inviabilizam qualquer projeto sério de modernidade.
Em uma entrevista à Folha (11/9/96), quando o repórter lhe perguntou como se sentia diante da acusação de que antes defendia os comunistas e agora os criminosos, d. Paulo repeliu a calúnia e acrescentou: "Mas não posso desistir de uma coisa que é essencial ao cristianismo: defender aqueles que não têm defesa e defender aqueles que têm razão em pontos que a maioria ainda não reconhece". Um pouco adiante, quando o repórter lhe pergunta que perfil deveria ter seu sucessor na Arquidiocese de São Paulo, d. Paulo não hesitou: "Ser amigo do povo e firme com o Evangelho".
Essa coragem de defender os pobres e os oprimidos, de não distinguir direitos humanos de ricos e de pobres, foi sempre a marca de d. Paulo. Jamais se deixou encantar com ideologias. A única que reconhece ele não a vê como tal: o cristianismo. Jamais, também, foi partidário. Sempre demonstrou simpatia para os diversos partidos de esquerda moderada, mas não se atrelou a eles.
Nos tempos da ditadura militar, ninguém teve mais coragem e prudência em enfrentá-la. Em muitos dos diagnósticos do regime autoritário, nos anos 70, d. Paulo era visto como o principal líder da sua oposição, como o mais forte defensor dos direitos humanos e da democracia.
Essa coragem e essa firmeza trouxeram problemas para d. Paulo: problemas em Roma, depois da guinada para a direita desta nos últimos 15 anos; problemas com o governo, no período autoritário; problema com as elites econômicas paulistas, que sempre o viram com uma ponta de desconfiança, incapazes de compreender seu papel mediador e incentivador no processo de modernização do país.
Agora, entretanto, quando d. Paulo poderá ser substituído na Arquidiocese de São Paulo por haver atingido a idade limite de 75 anos, toda a sociedade paulista, senão brasileira, manifesta sua preocupação. Afinal, continuamos a enfrentar, no campo da injustiça, dos direitos humanos e dos direitos sociais, problemas gravíssimos. Embora ninguém seja insubstituível, quem melhor do que ele para continuar a ajudar a resolver esses problemas fundamentais da modernidade brasileira?

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