São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 1996
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Publicações 'viajam' na história italiana

ELIZABETH MARCUS
DO "TRAVEL/THE NEW YORK TIMES"

Antes, era o guia "Baedeker" ou nada. Agora, uma miríade de guias competem pelo privilégio de responder às questões do viajante.
Usualmente, carrego comigo apenas um desses livros, mas, em recente viagem para o norte da Itália, embalei quatro: "Fodor's", "Michelin" e os mais detalhados "Cadogan's" ("Tuscany and Umbria" e "Cento Città"), escritos por Paul Hofmann.
Foi uma experiência reveladora. Tudo o que queríamos era uma clara apresentação dos fatos, mas, em Verona, começamos a perceber que estávamos sendo servidos com um vapor escuro em vez de um caldo límpido.
Desde que "Romeu e Julieta" virou leitura obrigatória no colégio, nosso primeiro destino era a casa de Julieta.
"Qual é a verdadeira história?", meu filho queria saber. Sempre pensei que a peça fosse pura ficção, mas achei melhor checar com as minhas referências.
Para minha surpresa, o "Michelin" trata a história como fato e o cenário, como real.
Romeu e Julieta, atesta o guia, eram de famílias veronesas dividas em facções políticas medievais: os Montéquios, partidários dos guelfos, e os Capuletos, dos gibelinos.
A casa de Julieta -23, via Cappello-, segundo o "Michelin", pertenceu à família Capuleto.
Que Verona esteve dividida por séculos é sabido, mas há evidências documentadas da existência dessas famílias? Se sim, essa história bem que pode ser verdadeira.
O "Fodor's" se posiciona claramente no lado da ficção e nem sequer menciona a casa de Julieta.
Em seu texto, afirma Paul Hofmann: "Todos esses lugares são espúrios". De acordo com ele, Verona vem promovendo essa história desde o século 18.
Torre inclinada
Fomos a Pisa, ao Campo dos Milagres, o formoso conjunto de prédios romanos do qual a torre pendente faz parte. Nada sobre a torre deveria ser desconhecido.
Por que ela tomba? Pensei que soubesse a resposta, mas chequei meus guias para me certificar.
Começando pelo "Michelin", leio que a inclinação se deve à "sedimentação do solo alúvio, que diminui a resistência para suportar o peso da torre". Justamente o que pensei: terra mole. Os comentários de Hofmann sobre o tombamento concordam quanto a causa.
O que poderia o "Fodor's" acrescentar? "A inclinação começou quando a construção chegou ao terceiro andar. Os arquitetos tentaram compensar isso fazendo os andares restantes um pouco mais altos do lado penso, mas o peso extra só piorou o problema."
Os edifícios no Campo dos Milagres são obras-primas da arquitetura romana. Será que arquitetos tão geniais teriam essa idéia tão pouco luminar?
Talvez o "Cadogan's" pudesse esclarecer. "Os arquitetos que mediam as pedras no século passado concluíram que o estado da torre era absolutamente intencional desde o dia em que foi iniciada."
Prosseguindo na leitura, vimos que todos os prédios no Campo dos Milagres inclinam e que, no tempo da construção, os prédios verticais estavam démodés.
Démodés? É muito difícil ver direito. Nós não conseguimos determinar se, de fato, os outros prédios estavam fora de seus eixos.
Mesmo que estivessem, não seria mais plausível concluir que o subsolo é instável? Se, por outro lado, os prédios tivessem sido erguidos com pedras angulosas, isso não seria universalmente conhecido?
Números
Nós acabamos dividindo os guias e lendo separadamente, para provocar conflitos de opiniões.
Em Siena, nos foi ensinado que a torre Mangia mede 88 m ou 101 m e que a fonte Gaia foi concluída em 1419 e inaugurada em 1348.
Em Pádua, aprendemos que os 34 ou 38 afrescos de Giotto foram pintados em 2, 4 ou 5 anos, entre 1302 e 1310.
O clímax do grande debate sobre guias aconteceu em San Gimignano, a amurada cidade toscana, famosa por suas torres.
Com perfurações do tamanho de um tijolo, finas e fracas, roliças e ornamentadas como as de Pisa, elas parecem mais uma pouco útil chaminé quadrada. Para que elas poderiam ter sido usadas?
Adiante, diz o guia: "Hoje, 14 torres estão em pé, mas, no ápice do conflito entre guelfos e gibelinos, uma selva de mais de 70 torres desse tipo dominava a cidade".
O "Cadogan's" não traz explicações para as perfurações, mas explica que todas as cidades toscanas abrigavam torres desse tipo.
San Gimignano, diz o guia, é a única onde restaram 15 dessas torres. O "Cento Città" não menciona as perfurações, mas aponta que 13 torres remanesceram, muitas inclinadas.
Sobrou então o "Michelin", cuja explicação ganhou uma salva de palmas pela originalidade. Segundo ele, as perfurações eram feitas para a ligação entre as torres, possibilitando o encontro de nobres em tempos de perigo.
No final da viagem, uma coisa ficou clara: é pouco recomendável viajar com apenas um guia.
Uma viagem familiar não é o melhor momento para trafegar pela tênue linha que separa o fato da ficção ou para descobrir uma verdade simples e vê-la afundar em ambiguidades. Decidir onde será o almoço já é desafio suficiente.

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