São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 1996
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Produção se afirma como testemunho pessoal

LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Diante de um artista emergente, minha contribuição na curadoria do "Antarctica Artes com a Folha" consistiu em exercer uma análise estética que pudesse abarcar aquela fração do desconhecido capaz de desmantelar o senso comum.
O percurso da mostra resiste a qualquer classificação. Um primeiro olhar aponta a multiplicidade dos temas e recursos. Não pretendo desenvolver tais aspectos.
Deixo apenas uma ressalva: no momento em que as chamadas "novas mídias" iniciam seu ingresso no debate artístico, torna-se necessário fomentar a discussão sem perder de vista a força poética da obra, seja ela composta dos rudimentos da alquimia de materiais orgânicos ou dos aparatos tecnológicos mais sofisticados.
Dito isso, uma das grandes diferenças a ser notada entre o tom irônico das produções pós-modernas e o atual conjunto de artistas reside justamente no uso de todo tipo de procedimento (desenho, pintura, escultura, vídeo, fotografia, poesia, expressão corporal) em causa própria.
O problema portanto deixa de se concentrar na trama da linguagem (o que dizer num universo sobredenominado?) para levantar a questão do destino do sujeito (em que termos é possível existir ainda hoje?).
A pane da expressão que já paralisou jovens artistas deixa lugar para a necessidade de um depoimento a ser dado, revitalizando até as performances escatológicas dos anos 60 que acirravam a noção de limite.
Meio adequado
O que distingue portanto a produção emergente é que ela se afirma como um testemunho de alto teor pessoal, antes mesmo de ter encontrado seu meio adequado.
Inserir a obra no espaço urbano-arquitetônico é uma preocupação que, embora ainda constante, mostra sinais de ter refluído do diálogo estabelecido com o exterior para um discurso tecido no âmago das coisas. Mas, se o artista demonstra a vontade de revelar uma área íntima, isso não significa porém decretar o fim da poética do espaço.
Nesse sentido, nenhum termo mais feliz que a experiência interior de Georges Bataille para operar uma revisão do pensamento modernista.
Entre a "emoção meditada" e alguma tendência mística, a noção de "si mesmo" é o instante no qual um sujeito entregue ao desconhecimento se funde no mundo e o funda.
O automatismo de repetição, por exemplo, volta como um revide descontrolado do inconsciente, familiar tanto à psicanálise como ao surrealismo. Espaços de caráter reservado (caixinhas, ninhos, gaiolas, cofres, gavetas e armários) escapam de uma classificação formal para se conjugar dentro de uma estética do esconderijo.
Curiosamente, não há tensão quando os trabalhos oscilam da miniatura ao monumento, num convívio sereno, em escalas invertidas. Essa negação de uma lógica da autoridade descobre sua interface no discurso anárquico.
Ao contrário do que pode parecer, nenhuma inflexão fundamentalmente pessimista impregna o pensamento do jovem artista. O trágico da existência encontra sua justa tradução ora na linguagem do absurdo, evidenciada na abundância das imagens hiper-realistas e surrealistas, ora numa atmosfera muito particular sussurrada em "tom confessional".
Mas cabe questionar esse salto de uma prática confessional para a abertura dos arquivos pessoais. Se revelações exibidas provocam um constrangimento natural, o que leva o artista a acreditar que suas reminiscências possam ser dignas de histórias extraordinárias e gerar um debate público?
Mesmo sem ter sido citado até agora, por um movimento de contenção, o corpo aqui é imanente, de sua ausência às suas secreções. Os gestos recorrentes definem a medida do sintoma: suprimir, queimar, obstruir, raspar, escurecer, dobrar, obliterar, depositar, estocar, acumular, repetir.
Até as tradições (religiosas, familiares, regionalistas) são desviadas de sua vida política para ser manipuladas em benefício de fartos registros pessoais. Nesse processo de demanda de provas, a profusão de texturas e de suportes é literal e explícita.
É como se, ao escancarar uma interioridade (por meio de documentos que presentificam lembranças de infância, tais como diários, cartas e fotografias), a memória atenuasse seu aspecto fugaz.
Ora, meditações detidas sobre a memória não são novas na história da literatura, tendo na obra de Santo Agostinho seu expoente mais lírico.
Na arte da autobiografia, gênero por excelência da busca de uma verdade pessoal, as profissões de fé ocupam lugar de destaque. A que espécie de fé estamos confrontados agora? Surge um tipo de sacerdote que, acesso à reclusão, apropria-se dos dogmas para reprocessá-los num contexto iconoclasta.
O culto proposto pelo jovem artista opera uma travessia pela convicção íntima, sem pudor aparente.
Recorre-se a atestados de autenticidade para montar um retrato, uma reprodução destinada a enganar a própria idéia de original. Nessa experiência idealizada subjaz a crença num padrão no qual seriam refletidos os grandes temas universais.
Mas a desilusão do gesto autobiográfico já encontrou seu esplendor e escândalo na postulada sinceridade dos românticos. Entre a verdade e o erro, abre-se toda uma gama de tons intermediários que mesclam dissimulação e desculpa.
O exame da identidade é entoado numa oração em falsete, ainda que o retoque da imagem diante de uma promessa de imortalidade seja um gesto perfeitamente cabível quando a beleza crispada da vida sexual corre o risco de vir coberta de chagas.
Ocorre que -Bataille, ainda- o erotismo é definido pela noção de segredo, de zonas proibidas. O que restou portanto do "umbigo do sonho" (o "Nabel des Traumes" de Freud), este mínimo e inexplicável ponto que, conectado ao mistério do desconhecido, resiste à revelação?
Não por acaso, a metáfora existencial das "celas/células" de Louise Bourgeois reaviva de forma poderosa um pesadelo ancestral que deságua do inconsciente e parece nunca sossegar: a destruição do Pai, a descoberta da sexualidade, a sublimação do desejo, os ritos de iniciação e de fertilidade, o temor reverencial da morte.
O enigma significa. Devassado, não terá como repercutir quando for feito o balanço desta exposição. Resistir à interpretação é tarefa de uma obra forte e temerária. É preciso deixar a nebulosa urdir seu sentido na sombra.

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