São Paulo, sexta-feira, 27 de setembro de 1996 |
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Certezas assassinas de tempos corretos
CARLOS HEITOR CONY
Tudo isso seria explicável e até justificável se, juntas ou separadas, essas coisas não fossem infinitamente chatas. E quanto mais razão o ecologista tem, mais ele se torna chato. Ele não nasce ecologista, como os poetas nascem poetas. Ele se faz, como os oradores, os escoteiros, os atletas, os bandeirinhas de futebol. É uma construção paciente, laboriosa, gradual. O ecologista começa protestando contra a devastação da Mata Atlântica ou contra o extermínio das focas no pólo Norte. Até aí, tudo bem. Tanto a Mata Atlântica como as focas do pólo Norte -devíamos incluir também os pinguins do pólo Sul- merecem o nosso respeito, mas não chegam a invadir nosso cotidiano de cidadão, de pedestre, de bancário ou de curador de resíduos. Cada cidadão, seja bancário, pedestre ou curador de resíduos, carrega seus problemas específicos e tanto a Mata Atlântica como as focas e agora os pinguins serão, para eles, um assunto acadêmico, no qual todos estarão de acordo. O ecologista não dorme sobre os louros -aliás, ele pouco dorme, permanece indormido, vigilante, com medo de, a um simples cochilo, despertar num deserto, num universo calvo e desolador. Outro dia, vi na TV um documentário sobre as atividades dos ecologistas escandinavos: lá, eles curtem essas coisas, já solucionaram suas necessidades imediatas. Na Suécia, existe um órgão do governo cuja função, ao invés de resolver problemas, é descobrir problemas. Nada demais que gastem tempo e dinheiro procurando causas nobres como a luta contra a poluição dos rios africanos e contra o massacre dos nossos jacarés. Há uma campanha -além da solidariedade báltica- para conscientizar os governos a punir, com anos de cadeia, quem quer que use sapato, bolsa ou cinto feitos com a pele de animais. Tal como os escandinavos, também sou favorável à limpidez dos rios africanos. Pessoalmente, acho de péssimo gosto qualquer objeto, utensílio ou acessório feito com a pele de réptil (acho que jacaré não chega a ser réptil, mas deixa pra lá). O que me espantou no documentário, produzido e exibido sob os auspícios de uma ONG do Canadá, foi que todos os membros da sociedade ecológica usavam blusões de couro, alguns -devido ao frio- usavam luvas também de couro. E um casal de parrudos americanos, que acabara de chegar do Quênia, foi documentado em casa, na hora do almoço: na mesa, com as duas coxinhas espetando o ar, um suculento frango era devorado com fritas e goles de coca-cola. Vamos por partes. Quê que os ecologistas têm contra bois e galinhas? São tão animais quanto os javalis, os rinocerontes, os jacarés e as borboletas de asas fosforescentes. O que se devasta de galináceos nos quatro cantos do planeta é uma fábula. Praticamente, a cada segundo do tempo que vivemos, são sacrificadas no mundo inteiro cerca de mil galinhas (o dado é da FAO). Desde que comecei a escrever este artigo, já foram assassinadas quase 1 milhão de galinhas em todo mundo. Trata-se, esse sim, do maior genocídio da história. Creio que logo depois da hecatombe diária de galinhas, vem a chacina de bois. E os ecologistas, que muitas vezes embarcam na canoa da ecologia alimentar e se tornam vegetarianos, adoram usar blusões de couro. Como são pessoas de gosto sadio, evitam as imitações de plástico. Os mais enturmados adoram calças de couro e outros penduricalhos feitos com a submissa pele vacum. Antitabagistas Não é a falta de coerência que me aborrece nos ecologistas. É a chatice mesmo. E entre os espécimes de ecologistas, o mais chato é o antitabagista -que forma uma espécie de reserva de mercado para a causa. Esse é nefasto, sem educação, truculento, está sempre a nos ameaçar com o câncer pulmonar e o enfarte das coronárias. Vestais do meio ambiente, se a polícia deixasse, eles purificariam o ar terrestre exterminando a todos nós que fumamos. Essas campanhas agressivas pelo politicamente correto, além de ridículas, podem terminar mal. Há tempos, ficamos chocados com o menino de 14 anos que foi infeliz nas provas de admissão. Temendo ser discriminado, suicidou-se. Ele colecionava figurinhas, tinha um pôster do Ayrton Senna no quarto. Procurava ser um bom menino em casa e no colégio. Sua sensibilidade -que talvez tenha passado despercebida a seus parentes e mestres- não suportaria a humilhação de ser considerado um perdedor, embora suportasse o castigo de repetir o ano. Um caso que, aparentemente, não tem culpados. O culpado seria o próprio menino que não devia ter muita coisa a fazer neste mundo que construímos com as nossas certezas. Texto Anterior: Lumet acha o mistério Próximo Texto: Haroldo de Campos recebe homenagem Índice |
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