São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Clichês nascidos na favela

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O lançamento de dois inéditos de Carolina Maria de Jesus traz de volta a controvérsia sobre o "caso verdade" dessa mulher semi-analfabeta, moradora de uma favela de São Paulo, que, em 1960, foi equivocadamente trazida a público como escritora de literatura, pela publicação de seu "Quarto de Despejo - Diário de Uma Favelada".
Nascida em Sacramento, Minas Gerais, em data incerta (talvez 1915), Carolina era empregada doméstica e catadora de papel e lata quando seus manuscritos foram "descobertos", numa favela do bairro do Canindé, pelo jornalista Audálio Dantas.
Os manuscritos -hoje calculados em 37 cadernos, entre inéditos e publicados, totalizando cerca de 4.500 páginas escritas à mão em cadernos velhos, às vezes achados no lixo- conheceram consagração e queda com o advento de "Quarto de Despejo". Publicado em 13 idiomas, o livro vendeu mais de 100 mil exemplares no Brasil, caiu nas graças de certa linha de acadêmicos brasileiros e de todo tipo de brasilianistas mundo afora.
O tom de denúncia social do diário deve certamente ter causado comoção na época. E continua comovente o discurso cheio de erros gramaticais de Carolina, negra, mãe solteira de três filhos e que só estudara até o 2º ano primário: "15 de julho de 1955 - Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos (sic) alimenticios (sic) nos impede a realização de nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar".
Depois do estardalhaço do primeiro livro, Carolina publicaria "Casa de Alvenaria" (1961), "Provérbios" (1963), "Pedaços da Fome" (1963) e "Diário de Bitita" (1986, póstumo), todos fadados à confirmação do equívoco, engendrado em parte pela mídia, em parte pela academia ansiosa por erigir pontes entre a erudição alienada e a sabedoria popular infusa, calcada na experiência.
É claro (e deveria ter sido na época) que aqueles manuscritos encontrados na favela não têm qualquer valor literário, porque não transcendem sua condição de biografia da catação de papel e de feijão (quando havia) no cotidiano de uma favela.
Os textos têm no máximo valor documental, de interesse sociológico -o "caso Carolina" talvez aponte para mecanismos de ascensão social possíveis na realidade de injustiça socioeconômica brasileira-, antropológico ou mesmo psicológico, em se considerando novamente o "caso Carolina" como um de compulsão para a escrita, necessidade da arte ou coisas do gênero.
O lançamento dos inéditos, "Antologia Pessoal" (poemas) e "Meu Estranho Diário", uma espécie de continuação de "Quarto de Despejo", não acrescenta nada à trajetória de Carolina Maria de Jesus, autora dos desabafos manuscritos de uma favelada. O simples fato de "Meu Estranho Diário" estar sendo publicado na íntegra, conforme o original, sem qualquer correção gramatical ou de estilo, confirma o valor de documento apenas.
Aliás os dois livros, de tanto não se sustentarem por conta própria, saem a público cercados de preâmbulos, prefácios e posfácios necessários -de José Carlos Meihy, Robert Levine e Marisa Lajolo. Mas nenhum esforço é capaz de transformar em qualidade poética os clichês de forma e conteúdo, a rima fácil e o simplismo dos versos de Carolina, como reconhecem seus próprios prefaciadores.
A impressão que fica é a da necessidade de "reparação" moral, em expressão de Lajolo -que de resto segue a tendência atual das reparações das minorias ou dos socialmente marginalizados-, ou expiação de culpa pelo "descuido" acadêmico para com o que se quer chamar de "obra carolinana". Seja lá que validade tenha essa atitude positiva ou politicamente correta, não é isso que vai dar aos textos de Carolina o estatuto de literatura.

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