São Paulo, segunda-feira, 6 de janeiro de 1997
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A paranóia como gênero de primeira necessidade

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Norte-americanos tendem a ter uma visão conspirativa da história? Estava me colocando essa questão quando vi Walter Cronkite lembrando seus tempos de repórter. Ele anunciou a morte de Kennedy e transmitiu, ao longo do dia, todos os detalhes dolorosos da tragédia. Mas, ao comentar o filme de Oliver Stone, seu rosto se transfigura: como foi possível inventar uma conspiração tão articulada para explicar o assassinato no Texas?
Na revista "Wired", Tom Dowe analisa o ano de 96 e admite que a visão conspirativa da história inundou a Internet, brindando os navegantes com a revelação de inúmeros segredos, segredos quase sempre envolvidos pelos companheiros inseparáveis: conspiração e paranóia.
Já na campanha eleitoral, repórteres amadores pegaram pesado, como se diz na gíria carioca. Acharam uma residência luxuosa, de propriedade do candidato do Partido Verde, Ralph Nader, mas bombardearam com fogo grosso a candidatura Clinton. Históricos médicos de Clinton, com traços residuais de doenças venéreas, vestígios de Prozac e até a denúncia do uso de cocaína na mansão oficial dos Clinton, em Little Rock, na década de 80.
Nem todas essas revelações bombásticas emergem na imprensa tradicional. Algumas o fazem de forma arrasadora, como a história de que o vôo 800 da TWA foi derrubado por um míssil da marinha americana. Pelo menos um repórter experimentado, Pierre Sallinger, embarcou nessa canoa, citando documentos que estavam disponíveis na Internet. Acabou se queimando.
Quando você questiona uma versão mirabolante, argumentando que a imprensa a ignorou, aí então você apenas reforça a tese do autor, porque o silêncio da imprensa é sempre visto como indício de que "algo muito estranho aconteceu, pois ninguém ousou tratar do tema, abertamente".
Que papel cumpre a visão paranóica da história? Simplesmente, como afirma Richard Hofstader, o preenchimento de uma função onírica: quem realizará meu sonho, quem me livrará do meu pesadelo?
A visão paranóica tem essa irresistível sedução da facilidade: tudo se explica num passe de mágica, todos os complicados elos da realidade se integram, desaparecem as dúvidas.
Mas há outro aspecto conservador nesta idade do ouro da visão conspirativa. Talvez se explique melhor na frase de um empresário: "É preciso uma dose mínima de paranóia para se crescer nos negócios".
Essa função econômica ainda não foi estudada. O mundo globalizado anda depressa demais. As informações se multiplicam num ritmo assustador. É humanamente impossível acompanhar tudo.
Estamos em dívida. De certa maneira, todos somos um pouco canastrões, dirigindo um barco com informações obsoletas. Quando virá nosso sucessor, aquele que nos mandará para o museu, como se mandam as máquinas de penúltima geração?
Nesse contexto, uma dose diária de paranóia é inevitável. Toma-se mais uma vitamina para garantir energia no trabalho. Mais um escudo para se proteger dos que correm por fora e, subitamente, ameaçam nossa posição.
A paranóia, se não estou delirando, transita, devagar, da coluna dos sintomas neuróticos para a das qualidades funcionais.
Há histórias, no entanto, que emergem para o bem.
Como a notícia da síndrome do Golfo, uma série de sintomas produzidos por armas químicas que está surgindo em milhares de ex-combatentes norte-americanos e ingleses, estes em menor escala.
O Pentágono acabou sendo forçado a criar uma comissão para estudar o assunto e, hoje, dá um tratamento mais rigoroso às denúncias de soldados que reportam esses sintomas.
Mas casos em que os segredos acabam fecundando, tornando-se pesquisas sérias, ainda são bastante raros. Navega-se num oceano de versões paranóicas da história, algo que escritores como Hofstader consideram típico da cultura norte-americana.
Esta tendência, segundo Hofstader, baseia-se na suposição de que todos os males vêm de um só centro, que pode ser eliminado por uma espécie de ato final de vitória sobre a fonte maligna.
A história norte-americana está cheia de denúncias desse tipo, embora depois da Segunda Guerra os comunistas tenham ocupado o lugar de destaque na lista da fonte de todos os males.
Na verdade, o problema não é apenas norte-americano. Um dos primeiros grandes ensaios de Hans Magnus Enzensberger foi exatamente "Política e Crime", um painel da importância do rumor na história real.
A Internet apenas amplifica isso. Enfrenta as notícias tradicionais, com revelação de segredos, rumores, pesquisas semielaboradas, o que Tom Dowe chama, com bastante felicidade, de paranews, um gênero que, brevemente, poderia ganhar até um canal de TV, pois sobram filmes tentando explicar segredos sepultados pela história.
Freud tem suas explicações. Para ele, a paranóia se forma a partir de impulsos homossexuais reprimidos. Essa tese está sendo contestada.
Por enquanto, intriga-me esse espetáculo planetário, com tantos personagens (Trilateral, Narcotráfico, Cientologia, Banqueiros Internacionais) fungando na nossa nuca.

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