São Paulo, terça-feira, 7 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Presidente sofre com as dúvidas do ano novo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Será que eu estou errado?"
O olho do presidente vigiava no escuro. À sua frente, o mar batia nos penhascos de Fernando de Noronha. Um atobá piou. "Será que atobá pia?" pensou FHC. De qualquer modo, algo piou. 1997 começava a raiar.
"Tudo bem que a reeleição saia ou não. Minhas dúvidas são mais amplas..."
"Solicitude, récif, étoile", recitou o presidente eruditamente na paisagem de mar e pedra.
"Tenho medo de estar inserido num erro maior, na 'mão invisível da episteme', em uma moda histórica que me leve necessariamente à tragédia do fracasso. Eu vivo criticando a 'fracassomania' brasileira.
Mas e se eu estiver embarcado num entusiasmo 'micro' embutido num equívoco 'macro'? E se, por vias tortas, os comunas religiosos estiverem certos? Será que eu estou vendo uma 'irreversibilidade weberiana' na economia globalizada, quando na realidade esse 'destino' é apenas um programa de expansão de mercados hegemônicos?
Será que eu estou vendo uma tendência histórica (oh...velho marxista hegeliano...) no que é tão somente um caso de marketing? Deus... E se for?"
FHC teve uma secreta inveja do debate interno dos petistas. "Doces bárbaros... perdidos na dúvida entre trotskismo e stalinismo, debates dentro de uma mesma fé, com o santo sabor das discussões canônicas de convento... ah, se soubessem do frio vento do 'Entzauberung', o 'desencanto' de Max Weber, da solidão da ausência de sentido..."
FHC sentia fundo a dor do tempo: a perda da esperança de um fim histórico. Enquanto o socialismo existiu como alternativa, podíamos pensar o mundo como um erro consertável. A vida era um desvio.
"Sem o socialismo como esperança, o desvio é a vida", pensou o presidente. "É... mas é bom o fim dessa ilusão louca, o fim dessa 'história' como um 'êxtase moral'; é bom navegar nas certezas da dúvida, na vivência do mistério! O ideologismo antigo era uma cegueira. Temos de trabalhar no indeterminismo do mundo!", pensou FHC com orgulho.
Súbito, ouviu-se uma voz no vento: "Muito bonito esse papo francês 'delleuziano', mas vai dizer isso para o presidente da IBM, ah ah! Pergunta se o Departamento de Vendas da Microsoft trabalha no indeterminismo...ah...ah!".
FHC viu que seu pensamento ecoava no vento, como um advogado do diabo de si mesmo. O presidente teve uma funda saudade de Descartes, do tempo em que se achava possível construir uma cidade humana retilínea, coerente, saída do zero.
Ele tinha saudades dessa tradição platônica, kantiana, depois marxista, ele que hoje se via mergulhado na sujeira irremediável do compromisso.
O vento batia na madrugada. "Essa ilha já é uma escolha de território limpo, 'tábula rasa' cartesiana, longe da ambivalência política", sorriu FHC para si, contente de suas dúvidas cultas.
Mas o medo não passava. "E se eu estiver empurrando o Brasil para a mais negra submissão aos americanos, como querem meus inimigos da USP? E se, ao fim desse navegar no 'rumo inevitável da globalização', eu descobrir que apenas fui um inocente útil do velho 'imperialismo'?
Não. Tem de haver um muro de arrimo contra o liberalismo selvagem. Nossa condição de brasileiros barrocos e populistas nos atrasa e, ao mesmo tempo, nos defende de uma adesão fácil ao neoliberalismo.
Será isso uma racionalização de meu desejo de poder? Serei eu um deslumbrado, como aponta Emir Sader, por exemplo, ao dizer que, já em 70, eu amenizava o fascismo militar ao nomeá-lo docemente de 'autoritarismo'?"
FHC suava frio. Puxou o celular como uma salvação e ligou para o Alain Touraine em Paris. O velho mestre francês falou, falou, mas não disse o essencial.
Todos os perigos da globalização foram apontados, mas na hora de "o que fazer", na hora de definir que "diques" poderiam ser antepostos à selvageria do mercado, o ilustre francês não sabia a resposta.
"Mas, Touraine, diga-me, como criar uma ética de defesa social dentro do capitalismo financeiro global?" "Não sei... Liga para o Habermas", respondeu o velho mestre.
FHC desligou mais angustiado, com as últimas palavras de Touraine: "Attention, les americains sont des fils de putain!". FHC tentou se animar: "Meu Deus, e o frango a 90 centavos? Eu devo estar no caminho certo!".
"E o déficit comercial de 5 bilhões?", gritou-lhe no vento outra voz, que tinha o sotaque alemão da famosa "cassandra" Robert Kurz. "Países pobres como o Brasil só podem ocupar uns poucos nichos de exportação, ao passo que o resto é inundado e sufocado pela oferta dos países ricos e globalizados..."
FHC sapateava de raiva: "Canalhas, esses canalhas da velha esquerda podiam estar me ajudando a pensar! Mas não; estão discutindo para ver quem é mais radical, se é o Rui Falcão ou o Genoíno! Ninguém me ajuda a formular uma política industrial!
Como manter uma mínima substituição de importações visando o mercado interno, como quer o Celso Furtado, se temos de importar insumos externos que nos permitam a competitividade? Canalhas! Só sabem fazer profecias negras, análises perfeitas, mas na hora de 'o que fazer', ninguém sabe nada...!".
Na sua febre, FHC via o duro sorriso dos executivos americanos (que sabiam tudo) falando em "abertura de mercados emergentes", mas todos protegendo suas laranjas, sapatos, ferro e o cacete a quatro. Os duros americanos fingindo investir aqui, mas apenas comprando empresas nacionais falidas e aplicando em CDB.
"Mas de uma coisa eu tenho certeza", gemeu FHC para si, "um pouco desse calvinismo capitalista é bom para desarmar a tradição ibérica escrota do clientelismo e da dependência ao Estado-pai...". Era um consolo.
E ali, ao raiar do ano diante do "velho oceano" de Lautreamont, FHC permitiu-se ter orgulho de sua luta solitária. E pensou, feliz: "Eu tenho a força. Só eu tenho um saber marxista, temperado por uma 'praxis weberiana'! Só eu posso fazer o nobre pacto entre o acaso e a necessidade, entre o mercado e a justiça! Eu sou a terceira via do mundo, eu encarno a síntese pós-utópica!".
Foi aí que o celular tocou entre os penhascos. Era o Luis Carlos Santos: "Presidente, acho que já conseguimos os votos de Wigberto Tartuce, Paes de Andrade e de três traidores do Maluf para a reeleição. Só falta agora convencer o Pedrinho Abrão, que ainda vota...".
No céu, o atobá piou. "Atobá pia?", pensou FHC em dúvida.

Texto Anterior: Os CDs mais vendidos da semana
Próximo Texto: Hugh Grant quer voltar às comédias
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.