São Paulo, quarta-feira, 8 de janeiro de 1997
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No país dos anões gigantes

CANDIDO MENDES

Voltam neste Natal as manchetes das tropelias e lambanças dos anões com o Orçamento no Congresso, a encherem os bolsos o quanto possam das verbas públicas. Já nos habituamos a essas histórias de corrupção no tempo das festas, "cesteiro que faz um cesto faz um cento". O hábito faz o monge, e o Orçamento, o anão. Prevaricação sistêmica, que permite a máquina legislativa, para deixar, afinal, "tudo como dantes no quartel de Abrantes".
Rotina e do mais puro estupor, que não nos choca mais, é o caso deste Pedrinho Abrão, que só faz refinar a desenvoltura da facada ou da propina, no usual do trato com os dinheiros do governo.
O diálogo com o lobista é o mais sucinto e inequívoco, negócio fechado ou não, com toda a mímica instantânea de uma operação de Bolsa. É "pegar ou largar" os 4% da benesse como negócio bom, tranquilo e reconhecido.
Só que, desta vez, é o anão-gigante, o pego com a boca na botija a convocar a solidariedade de toda a bancada do partido. Entre todas as legendas, a do PTB é hoje especialista na barganha do poder e sabe, mais que qualquer outra, quanto vale o seu quilo de fisiologismo na balança dos cargos e das comissões no Planalto. E é o próprio líder e negociador-mor que se vê derrubado.
Por que não se sacrifica logo a liderança atingida, como se fosse portadora estrita da peste da corrupção, incontaminados os demais deputados? Por que não se livra o Congresso de suspeita pela imolação desse gordo peru, trinchado para o escarmento do ano? Ou não há mais vítima à altura da transação para resgatar a pureza do Legislativo, e só resta à bancada toda jogar-se de corpo inteiro no perdão ao líder temerário?
Durante o tucanato, o Congresso só faz ampliar a ocasião para criar o ladrão, ou melhor, o anão. O atual relator da Comissão Orçamentária, Celso Bezerra, abriu a todo parlamentar a possibilidade de modificar, por inteiro, a destinação orçamentária proposta pelo Executivo. Até 95, limitavam-se o troca-troca e a interferência dos legisladores a tão-só 30% das destinações dos dinheiros previstos pelo governo.
Há quem veja na benesse extraordinária a contrapartida à emasculação do Poder Legislativo pelas medidas provisórias. Boca calada, os parlamentares aceitaram essa automutilação, mas cobram por essa convivência como eunucos no harém do tucanato.
Legislativo que não legisla propõe comissões de inquérito. Mas, sobretudo, mexe na lei de meios, a única chance dos parlamentares de falar grosso e renovar o espetáculo jurássico, em tempos de FH, das clientelas explícitas e da emenda em curto-circuito, da obra pública para o bolso do deputado.
Não há alto e baixo clero nessa ofensiva sem perdão, ensejada pelo esquartejamento orçamentário. A festa das fraudes só se afia após o primeiro susto de 94, numa escolástica refinada de sangrias e desvios. Superfaturamentos, subfaturamentos, verbas simbólicas para abrir destinações orçamentárias, comissões tabeladas. Nada na manga, tudo em quase monossílabos, tal como sussurrou Pedrinho Abrão ao preposto da Andrade Gutierrez.
Se é tal, hoje, a magnitude pressentida, nada sorrateira, do butim dos fundos públicos, o Congresso ora se debate entre responsabilizar um bode expiatório ou resgatar o Legislativo por uma Comissão de Inquérito ampla, real e irrestrita. É o que pede o cheiro de algo podre, que talvez exceda as exíguas dimensões do reino da Dinamarca.
Os 257 votos logrados pelo deputado Miro Teixeira partem a banda boa e a banda de Pedrinho Abrão na Câmara dos Deputados. O minidiálogo do acusado com o lobista só mostra o corriqueiro e usual dessas tratativas, sob o sol da República, mesmo no tucanato gloriosamente reinante.
Não são ouvidos de donzela os do empreiteiro que ora se escandaliza nem os do ministro dos Recursos Hídricos, decidido a pôr a boca no mundo. Mas o lance exorbitou do cálculo, e não há mais sacrifícios expiatórios que falem à Comissão de Inquérito em marcha e à "caixa de Pandora" que pode abrir.
Nessas ladeiras da catástrofe, devolve-se a Abrão o poder de levar ou não o Congresso ao fundo do poço em hora de votações nos trinques e de comportamentos engalanados, como pede a augusta votação do bis de FH. Se não quer o ex-líder ir para o patíbulo sozinho, arrisca-se a criar um auto-de-fé nas relações do tucanato com os dinheiros públicos. Talvez por isso mesmo, diante da sociedade civil, estarrecida depois do primeiro estardalhaço, esqueceu o Congresso de dar sequência ao que trombeteou na semana anterior.
A República e sua Branca de Neve prepararam o ajantarado da reeleição quente já. Fria, a emenda não se deglute nem sem Luís Eduardo Magalhães se põe a mesa, de novo, para o repasto do bis. Mas até onde o Congresso, de fato, está preparado para a caça aos anões gigantes, crescidos sobre a impunidade da corrupção, e cujo voto brandem até, quem sabe, para decidir do "sim" ou do "não" de mais um turno do presidente de todos os dotes e, talvez agora, de todas as tolerâncias?

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