São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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A repressão ao transporte alternativo é produto da ignorância

ELIO GASPARI

A maneira como as prefeituras das grandes cidades brasileiras estão lidando com o surgimento de um sistema de transporte público alternativo é uma mistura de covardia, prepotência e abissal ignorância.
Em São Paulo eles são chamados de "perueiros", no Rio são "topiqueiros" (nome tirado do utilitário Topic). Em Brasília são "kombeiros", e no Recife chamam-se também de "bestas" (do veículo do mesmo nome). Ninguém sabe quantos são. No Rio podem ser 1.000 ou 4.000. Em São Paulo, 3.500 ou 15 mil. Depende de quem conta. As prefeituras dizem que são muitos, mas não tantos. Os motoristas, que ganham a vida vendendo serviços às vítimas do sistema oficial de transportes, dizem que são muitos mais. É possível que só nessas duas cidades eles transportem pelo menos 500 mil pessoas por dia.
Em geral são cidadãos que perderam o emprego, botaram o dinheiro num veículo capaz de carregar meia dúzia de passageiros e trabalham rastro das filas dos ônibus. Em São Paulo cobram exatamente a mesma tarifa do sistema público. No Rio e no Recife, cobram mais. Oferecem prontidão, assento e rapidez (de uma maneira geral fazem o percurso em um terço do tempo). Num ponto carioca, oferecem até segurança. É gente que está trabalhando.
E o que é que as autoridades tem para oferecer? Repressão.
No Rio, cidade onde o general Nilton Cerqueira se esqueceu de botar meia dúzia de PMs para policiar as bocas dos túneis, já aconteceu o luxo de se colocar PMs nesses carros para flagrar a cobrança ilegal. O ex-prefeito Cesar Maia disse que eles ameaçam formar "uma máfia".
Em São Paulo o secretário municipal de Transportes chamou-os de "espertalhões". Nas últimas semanas o poder público paulista deteve mais motoristas (50) do que traficantes de drogas. (No centro é mais fácil achar boca de crack do que ônibus vazio.)
Um secretário de transportes de Recife ofereceu a chave dessa política de prepotência destinada a proteger uma rede de transportes públicos falida: "Não é em função das falhas que vamos permitir que o sistema seja desestruturado".
Tudo bem, mas os gênios da área metropolitana do Recife se esqueceram de botar linhas de ônibus ligando as cidades-dormitório que a circundam. Como os moradores dessa região estão deglobalizados e não podem importar BMWs, eles tomam as "bestas". Cobram R$ 1,00 por um assento, enquanto no "sistema" se paga R$ 0,85 para virar sardinha. (Com 71% de aprovação, as "bestas" são mais populares na cidade que FFHH.)
A repressão a esse sistema alternativo de transportes é ignorante porque reage de forma primitiva e violenta diante do novo.
É óbvio que o sistema de transportes não pode ser liberalizado como a venda de fósforos. (O general Pinochet tentou, produziu um cartel de malfeitores e teve que remontar o sistema destruído.) Isso não significa que a repressão seja resposta eficaz, até porque esses veículos são ao mesmo tempo problema e solução.
Basta que os burocratas com cabeça de cassetete resolvam ouvir as comunidades que são beneficiadas pelos "kombeiros". Não lhes custaria muito incluir esse tipo de veículo no debate das novas concessões que deverão resultar de uma lei que está sendo regulamentada pela Câmara. Não o fazem porque lhes falta a inteligência para formular uma política pública de transportes e coragem para defendê-la. Para eles, transporte público é carro oficial, e fila é aquele lugar da Disney onde falam alto demais. São ignorantes.
Os perueiros foram a grande estrela do processo de privatização dos transportes na Inglaterra. A ligação de Nova York com uma das ilhas vizinhas é servida regularmente também por "topiqueiros". A cidade de Phoenix ensinou que o custo de uma viagem de "besta" sai por menos da metade do movimento de um ônibus. Isso nos exemplos globalizados. Mas se quiserem um sucesso em Pindorama, terra na qual está fora de moda se acreditar, lá vai:
O problema do transporte alternativo foi resolvido em Porto Alegre no ano da graça de 1976. A prefeitura parou de aporrinhar os motoristas, legalizou o serviço, atraiu os empresários de ônibus para o negócio e os lotações estão lá até hoje. Não há transporte público ilegal na cidade.

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