São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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Uma nova cultura de solidariedade

TARSO GENRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Embora a felicidade tenha sempre como último reduto a individualidade e seja uma questão fundamentalmente privada, é óbvio que ela só pode se constituir com um referencial de natureza coletiva. Trata-se de buscar uma forma determinada de organização social que permita o surgimento de alternativas para o sujeito, que possam ser decididas (ou contidas livremente) para pensar o mundo como um mundo passível de ser vivido com alegria e dignidade. Este imaginário -no plano da política- só poderá desenvolver-se a partir de transformações práticas do mundo real, com experiências de governos que as realizem, estimulando uma nova cultura de solidariedade.
A questão da felicidade individual, aliás, passa a ser um tema altamente politizado. O processo de exclusão social e o aumento generalizado da violência chamam para a cena pública, por exemplo -por ser uma questão do Estado-, o direito à segurança. Este direito à segurança implica num problema para todos, inclusive para a própria possibilidade de fruição dos meios materiais, obtidos pelos cidadãos incluídos. De outra parte, os contingentes enormes de excluídos pela maré neoliberal, que tendem a aumentar, se mantidos os modelos de organização econômica atuais, transformam a questão da felicidade, para a maioria, numa questão estreitamente vinculada à potência do Estado para organizar a integração social, oferecendo possibilidade de renda e ocupação às pessoas que se encontram fora da sociedade formal.
O Estado provedor, que permitia a exclusão apenas como fenômeno marginal e estimulava na sociedade a "transição molecular" (de "baixo" para "cima"), desapareceu como referência. O Estado mínimo ou impotente e o modelo de sociedade que leva a maioria à exclusão e transforma os consumidores do mundo integrado em compradores compulsivos (1) põem em completa desorganização a subjetividade construída pela modernidade e estimulam a perda de referências e orientação, que existiam no capitalismo da Segunda Revolução Industrial.
Solidão e exclusão
A subjetividade do ápice da modernidade era baseada em valores minimamente voltados para o público e para a integralidade da cidadania. Estes, embora não realizados praticamente, construíram o imaginário social da maior parte do século 20. A tendência contemporânea que se observa, por outro lado, em eliminar o trabalho como fonte primária de identidade (Gorz) e o apelo cotidiano ao isolamento e à solidão aumentam o individualismo e a individuação como "modo de vida": a solidão da exclusão da maioria é incomunicável com a solidão auto-imposta dos privilegiados no topo.
A mudança nas noções de espaço e tempo também provocam relações de socialidade completamente novas. Isso se dá por meio da transmissão imediata de dados, imagens e vozes, somada à possibilidade de organizar o próprio diálogo, de acordo com as prioridades do indivíduo e por meio da programação microeletrônica e das técnicas virtuais. O conceito de "reunião" como momento de unidade necessária para explicitação de diferenças e consensos pode deixar de ser um momento de expressão corpórea e afetiva para tornar-se uma coletividade virtual.
Um novo e decisivo problema coloca-se, então, para a esquerda interessada em reconstituir um projeto socialista de cunho democrático: a questão do "modo de vida", ou seja, como as pessoas pretendem organizar a sua vida pessoal e social, as suas relações familiares e de trabalho, e como as novas possibilidades de autonomia, promovidas pelas revoluções da informática e da microeletrônica, refletem no imaginário popular remetido para o futuro como utopia possível.
A impossibilidade de que o Estado minimizado pelo neoliberalismo e o Estado desenvolvimentista forjado nos anos 30 a 50 respondam às novas exigências geradas pelas transformações ocorridas nos últimos 30 anos (2) está vinculada, no mínimo, aos seguintes desafios: superação deste novo ciclo de organização do sistema financeiro, que está voltado para a condição de parasita do setor público (3); emergência de novos conceitos sociais de "espaço" e "tempo" diante do surgimento dos novos padrões tecnológicos nas comunicações e telecomunicações, que se chocam com a petrificação da máquina estatal e da sua burocracia (4); o surgimento de um novo tipo de individualidade, singularizada pelo fracionamento da sociedade de classes tradicional e pelas novas técnicas virtuais; o "declínio dramático" (5) do movimento sindical, cujo modelo veio das revoluções na indústria de transformação, como contraponto que fez valer os direitos sociais e criou as políticas integradoras do Estado de Bem-Estar.
Este quadro ocorre no interior de uma crise de "regulação social" (6) do Estado sobre as relações econômicas, as quais, em conjunto com outros fatores culturais e políticos, ameaçam o conjunto da sociedade. Uma pequena parte dela, que se exclui "para cima" pelo delírio da riqueza absoluta, ao lado da cada vez maior pobreza absoluta, não tem possibilidades materiais e subjetivas de abdicar do seu modo de vida. Tal situação só pode se alterar pela construção de uma nova hegemonia, que possa articular, por acordo, o velho e o novo mundo do trabalho, e também por meio de um projeto que consiga rearticular as relações da sociedade formal com a sociedade informal.
Os novos sujeitos
As consequências políticas e espirituais da perda gradativa da expressão política da classe operária tradicional, estruturada organicamente nas grandes linhas de produção, e a enorme gama de novos sujeitos que emergem da revolução tecnológica em curso, colocam para o futuro do socialismo o projeto econômico e o projeto de um novo modo de vida num mesmo patamar de importância estratégica.
A "ilusão dos serviços" como fonte de correção do desemprego estrutural no modelo de sociedade atual não mais convence: "Não tem importância, trabalharemos em serviços, dizia-se antigamente. A esponja dos serviços está transbordando e não pode absorver nada mais. E os serviços começam também a ser autoprodutores, liberando cédulas sem bancários, cartas sem carteiro, encomendas sem vendedor" (7). Uma nova direção para o processo produtivo e um novo projeto econômico de caráter radicalmente distributivo se impõem para o reordenamento do conjunto da vida social.
O modo de vida originário da industrialização clássica foi saudado tanto pelo marxismo tradicional como pelos defensores do capitalismo. A diferença qualitativa entre ambos estava, de uma parte (do lado dos capitalistas), na defesa intransigente de uma sociedade fortemente autoritária e hierarquizada nas relações de trabalho e de família. De outra (do ponto de vista dos socialistas), na defesa de uma sociedade pautada pela igualdade, fundada na autonomia responsável dos sujeitos individuais, na qual os constrangimentos de "fora" (do Estado) fossem sendo progressivamente eliminados. Desnecessário dizer que ambos os projetos, o capitalismo e o socialismo estatista-tecnocrático, por motivos diversos, não apresentam hoje nenhuma perspectiva de futuro.
Não é de graça que o "modo de vida", aliás proposto por ambas as posições, era orientado e determinado espontaneamente pela modernização crescente das forças produtivas e pela sucção, cada vez maior, da energia e dos bens naturais para transformá-los em mercadorias de utilidade e fruição social. A possibilidade de uma produção que satisfizesse as necessidades do mercado (capitalismo) ou da sociedade (socialismo), sem qualquer suspeita de que a finitude dos recursos naturais pudesse impor um outro rumo para a sociedade humana, eram, respectivamente, o fundamento estratégico legitimador de ambos os projetos da sociedade.
A questão do "modo de vida" surge agora com força, pressionada pelas exigências de regulação determinadas pela crescente desordem, fragmentação e imprevisibilidade da vida social, que atinge a totalidade da sociedade. A instabilidade radical das classes e dos indivíduos que compartilham deste processo é originária das novas formas de produção material e cultural, da "necessária" exclusão social, que compromete o funcionamento do conjunto da sociedade atual, do desemprego massivo que decorre deste processo (que exige uma nova concepção de jornada de trabalho e de atividade), bem como surge da própria necessidade de recompor a vida social como uma totalidade pactuada de maneira minimamente consciente pela maioria.
A atual vida cotidiana, carente de uma base econômico-material capaz de dar uma mínima homogeneidade aos grupos, classes e indivíduos (que compõem o "campo" dos que são espoliados pela nova ordem neoliberal), só pode, então, unificar-se pela construção de uma nova subjetividade. Uma subjetividade que se torne hegemônica na sociedade e seja capaz de pautar, ao mesmo tempo, reformas econômicas radicais e uma concepção de cotidiano permeada pela política, no seu sentido mais nobre. Esta nova hegemonia, ao que parece, deve partir dos seguintes compromissos programáticos mínimos: a não-aceitação da exclusão como necessidade, a socialização do poder político e a consideração da finitude dos recursos naturais, que exige inclusive um novo sentido para o processo produtivo.
O espaço público não-estatal
A consciência da orientação dos indivíduos e dos grupos e classes, isolados, segmentados ou articulados em novas formas de existência e reprodução, passa a ser um elemento-chave para fazer emergir uma nova subjetividade coletiva, para fundamentar uma nova ordem social e um novo tipo de Estado. A "explosão das forças produtivas", prevista pelo marxismo tradicional, deve, nesta visão, sujeitar-se ao que for decidido pela nova regulação, para tornar-se produto de um "modo de vida" conscientemente orientado e não resultado da pura força fundante das relações econômicas.
A base deste processo só pode ser a exigência de um novo tipo de Estado. Um Estado subordinado radicalmente à sociedade civil, que forje as suas políticas a partir da combinação da representação política tradicional, estável, previsível, constitucional, com a democracia direta, de participação voluntária. Nesta, os sujeitos conscientes -aqueles preocupados com o presente cada vez mais excludente e doentio que nos ameaça- formam e ocupam um espaço público não-estatal. Espaço que se constitui num novo centro de reconstrução da política, capaz ao mesmo tempo de dar um novo sentido ao modo de vida atual (que tenda para a autonomia regulada e para os compromissos e conflitos conscientemente assumidos) e materializar reformas reais que já transformem a cotidianidade em cotidianidade menos alienada e mais solidária.
O processo de globalização econômica já realizado incide sobre "diferentes relações sociais (que) criam, pois, diferentes globalizações" (8), inclusive, já "no curto prazo e dentro de cada país, o estreitamento do leque de alternativas (com) tendências potencialmente autoritárias" (9). O projeto socialista viável, que deve se enfrentar antagonicamente com esta tendência, tornou-se, contraditoriamente, mais fácil de ser concebido teoricamente, mas mais difícil de ser aceito como prática social e modo de organização da produção.
Mais fácil de ser concebido teoricamente, porque a terceira revolução científico-tecnológica criou os meios necessários para a democratização radical do Estado e gerou a possibilidade de ampliação quantitativa e qualitativa da produção, com mais tempo livre para os cidadãos "fazerem política" e fruírem a vida. Mais difícil de ser implementado como prática social, porque estes mesmos meios tendem, no imediato, a aumentar o individualismo pelas atrações do mundo virtual e a fragmentação do trabalho social, exacerbando a alienação pela criação de um mundo cuja compreensão está cada vez mais fora da "alçada" do cidadão comum.
Sociedade formal e a informal
O centro da ação política democrática e socialista nos dias que correm deverá remeter para as lutas que promovam a retomada dos vínculos políticos da sociedade formal com a informal, não permitindo a "naturalização" do "apartheid" social e a consolidação de uma cultura política "lúmpen", que é o suporte central da dominação ideológica que cultua o autoritarismo do modo de vida neoliberal. (Como lembra o jurista mexicano Oscar Correas, o neoliberalismo conseguiu a incrível façanha de cortejar com sucesso e até mesmo ser apoiado pelas suas próprias vítimas.)
A promoção, também, de amplos movimentos que rompam com a fragmentação interna da sociedade informal, promovendo a participação direta dos cidadãos, agrupados ou não, sobre o Estado, estimula a radicalização da luta democrática, que é ao mesmo tempo insurgente e reformadora: capaz de promover resultados concretos no cotidiano e afirmar a permeabilidade do Estado atual e a possibilidade de desconstituição da sua potência autoritária e classista.

Notas
1. Castro, Cláudio de Moura. "Ir às compras: o ópio do povo (americano)", in "Veja", 13/11/96, pág. 162.
2. Fiori, José Luís. "Ajuste, Transição e Governabilidade: o Enigma Brasileiro", in "Desajuste Global e Modernização Conservadora", Ed. Paz e Terra, pág. 143.
3. Benjamin, César. "Alternativa Para o Brasil", comunicação apresentada à mesa "Projeto Nacional" do 3º Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, Rio de Janeiro, 17/10/1996.
4. Dowbor, Ladislau. "Da globalização ao Poder Local: a Nova Hierarquia dos Espaços", in "A Reinvenção do Futuro", Cortez Editora, Marcos Cezar de Freitas (org.), São Paulo, 1996, pág. 63.
5. Kapstein, Ethan B. "Os Trabalhadores e a Economia Mundial", Foreign Affairs (edição brasileira), publicação da "Gazeta Mercantil", 11/10/96, pág. 5.
6. Figotto, Gaudêncio, "O Local Face ao Nacional e ao Global - Limites e Possibilidades", dat., pág. 2.
7. Azanar, Guy. "Trabalhar Menos Para Trabalharem Todos". Ed. Página Aberta, 1995, São Paulo, pág. 23.
8. Santos, Boaventura de Souza. "Os Tribunais e a Globalização", in Folha, 9/11/96, pág. 2.
9. Lamounier, Bolivar. "A Democracia Brasileira no Limiar do Século 21", Konrad-Adenauer-Stilung, "Pesquisas", nº 5, 1966, pág. 56.

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