São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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A escrita da vida

BETINA BERNARDES
DE PARIS

A França discutiu como não fazia havia 20 anos a vida e a obra do escritor, ex-ministro, combatente, pensador da arte e aventureiro André Malraux, por ocasião da transferência de suas cinzas ao Panthéon, em novembro passado.
Alvo de muitas homenagens e livros, Malraux não havia sido ainda o objeto de reflexão de um filósofo. Esse novo olhar em relação ao escritor coube a Jean-François Lyotard, o teórico da condição pós-moderna. Com seu livro "Signé Malraux" (Assinado Malraux) ele faz uma biografia diferente de tudo que já foi escrito sob esse nome.
"É um livro no qual descrevo Malraux do interior, sem ser Malraux. Me disseram que é um livro em que me projeto em Malraux. Eu não me projeto, mas tento entrar em sua lógica", diz Lyotard.
Não é uma ficção, mas não é um documento. É o resultado de questões que o filósofo se colocou acerca de uma personalidade complexa como a de Malraux. "Ele considerava sua própria vida como absolutamente desprovida de interesse se ela não se assinasse. A idéia de que a vida era uma coisa dada era insuportável para Malraux. Se é dada, ela não vale nada, ela deve ser conquistada."
Lyotard tem cerca de 30 livros publicados sobre filosofia, arte e a sociedade contemporânea. Já esteve no Brasil, 15 anos atrás, para um seminário na USP. Aposentou-se da Universidade Paris 8, mas continua dando aulas de filosofia na Universidade de Atlanta, nos EUA. A entrevista a seguir foi concedida à Folha no apartamento onde vive com a mulher e o filho de 10 anos, em Paris.
Folha - Por que um filósofo se interessa em escrever uma biografia sobre Malraux?
Jean-François Lyotard - Primeiramente, não há separação de gêneros. Não há razão para que um filósofo não se interesse pela literatura. Há uma reflexão considerável sobre arte em Malraux, que ocupa muito mais livros que os romances, e essa reflexão é muito interessante para um filósofo, justamente porque ela não é filosofia, ela também não é história da arte e não é uma estética. O que ele faz, como ele procede, o que ele quer saber? Isso é interessante.
Ao mesmo tempo, ele dizia, nenhuma revolução mudará jamais a condição humana. Há um tipo de tese em Malraux que me surpreendeu e que convinha muito bem à minha melancolia.
Folha - Mas ele também era considerado um homem de direita e ficou muito tempo no ostracismo. O sr. é de uma geração que o considerava um pensador de direita?
Lyotard - Não. A sua geração é que o vê assim. A sua geração se lembra do ministro do general De Gaulle. Mas o general De Gaulle não é exatamente de direita. Quando De Gaulle veio ao poder, na liberação, tinha um governo no qual havia três partidos, os comunistas, os socialistas e a democracia cristã. Malraux retornou à Indochina para criar um jornal contra o colonialismo francês, ninguém fazia isso na época.
Em seguida, ele escreveu seu romance, voltou e se engajou imediatamente na luta contra o fascismo e o nazismo, ao lado dos comunistas e socialistas, de toda a esquerda francesa. Era muito ativo. Malraux foi à Espanha lutar contra os militares fascistas. Depois se engajou na Resistência francesa, em 44, combateu nos fronts da Alsácia. Isso não tem nada particularmente de direita.
Nesse momento, ele era classificado como um homem de esquerda e teve dificuldades por isso. Após a liberação, o que ele imaginava ser o comunismo virou o stalinismo, e era de novo um totalitarismo. Ele pensou que a política que De Gaulle faria era a única possível.
Folha - Como o sr. vê as posições políticas de Malraux?
Lyotard - Cada vez que houve um povo humilhado, oprimido, ofendido, seja na Indochina, Alemanha, Espanha, França, Malraux se achava do lado do povo. Não digo também que ele era um homem de esquerda, é complicado. Ele não acreditava em partidos. Ele não tinha fé em uma mutação política. Ele pensava que, a partir do momento em que uma organização política tomava o poder, de novo ela ia oprimir.
Folha - O fato de ter participado de um governo não o torna contraditório?
Lyotard - Era um governo que não tinha nada de opressivo, era o governo da República, eleito por vias democráticas. O general De Gaulle não era um ditador, era o presidente da República. Ele fez com que a República fosse respeitada, foi a esquerda que disse que ele era um ditador. Ele não fez nenhum ato ditatorial, ele pediu as eleições, propôs uma reforma da Constituição, fez com que ela fosse votada, em sufrágio universal. Essa mesma propaganda que fizeram de Malraux como um homem de direita escondeu que ele havia combatido com quem combateu.
Folha - Qual sua opinião sobre as decisões de Malraux como ministro da Cultura de De Gaulle?
Lyotard - Como ministro da Cultura ele fez coisas muito boas e fez cinco ou seis imbecilidades completas, como no episódio do afastamento de Henri Langlois da direção da Cinemateca Francesa. Langlois era um excelente cinéfilo, mas péssimo administrador. Malraux também colocou um diplomata ignorante na direção do Teatro Francês. Ele teve gestos como esse, que não podemos explicar, a não ser pelo fato de que, primeiramente, ele estava em uma grande depressão. Em segundo lugar, ele não tinha qualquer talento para ser ministro, era um aventureiro, se entediava mortalmente no Conselho de Ministros, fazia desenhos durante as reuniões.
Ele tinha uma paixão por De Gaulle, a quem via como alguém do porte de um Napoleão. Era a chance de sua vida de estar ao lado de um herói. Como ministro, ele tinha um orçamento miserável, ele tinha muitas idéias, como as Casas de Cultura, que ele espalhou verdadeiramente por todo o país.
Ele também tinha desacordos com De Gaulle sobre certos pontos. Por exemplo, sobre a política no Oriente Próximo. Malraux era pró-israelense, claramente, mas ele nunca disse nada publicamente. Ele também estava em desacordo com a Guerra da Argélia e com a política em relação aos EUA, mas a sua regra como ministro era de jamais contrariar De Gaulle em público. Ele era muito malvisto pelos gaullistas, pelos outros ministros, era considerado um perigoso aventureiro de esquerda.
Folha - Malraux foi um herói?
Lyotard - O que é surpreendente, e que eu tento dizer no livro, é que ele considerava sua própria vida como absolutamente desprovida de interesse se ela não se assinasse. A idéia de que a vida era dada, era uma idéia insuportável para Malraux. Se a vida for dada, ela não vale nada: ela deve ser conquistada. É preciso sempre arriscar, ele se achava sempre na primeira linha, no primeiro plano, tomando sempre os maiores riscos, não apenas físicos, mas intelectuais e morais, tomando sempre a responsabilidade pelo que fazia, e com o risco de perturbar todo mundo. Não é heroísmo, é simplesmente a visão de que é preciso tratar sua vida como um livro. É preciso escrevê-la.
Por exemplo, em 37, 38, na Frente Popular, no agrupamento de forças de esquerda, comunistas, trotskistas, anarquistas, socialistas, contra a extrema-direita, Malraux participou ao lado dos líderes socialistas. Três dias depois, pega um pequeno avião para sobrevoar o Iêmem sob o pretexto de descobrir as ruínas da capital da rainha de Sabá, e faz artigos para jornais. Ele faz isso, em 38, não para ser heróico. Ele tinha uma paixão pela lenda. Ele queria ser a lenda, ele viveu a lenda. O que o interessava era o imaginário. A realidade só interessa à medida que a realidade contém o imaginário.
Folha - Qual era a visão que Malraux tinha da psicanálise?
Lyotard - Ele tinha relações muito complicadas com a psicanálise. Ele conheceu a psicanálise indiretamente por um de seus amigos, mas mais a tradição de Jung que a de Freud. Ela lhe agradava porque Jung emprega uma sorte de elementos legendários, de mitos, como uma constante do inconsciente humano, e isso caía bem a Malraux. Ao mesmo tempo, rápido, ele percebeu que não era muito sério. Ele teve uma relação muito complicada e contraditória com a tradição freudiana. Contraditória no sentido de que, para ele, não era possível explicar uma obra, uma vida e, sobretudo, a assinatura a partir de um elemento determinante. Nesse momento, somos inteiramente determinados por algo já escrito e daí não há mais nada a escrever. Compreender Freud assim é um pensamento contra a criação, e Malraux não podia suportar isso. De outro lado, ele reconhecia de fato a importância da dificuldade que todos temos com a diferença sexual, com a relação com a mãe e o pai.
Folha - Como foi o trabalho de pesquisa para fazer o livro?
Lyotard - Foi um longo trabalho. Esse livro não é uma biografia no sentido profissional. Há biografias profissionais que são verdadeiramente impecáveis no sentido das biografias anglo-saxônicas, que são muito úteis, não há muitas idéias, mas evitam jornadas de pesquisas. Eu não sou biógrafo profissional nem historiador. Tinha vontade de tentar compreender a lógica de uma vida e de uma obra extraordinariamente complicadas, plena de acontecimentos de todos os tipos. Malraux era um homem de uma atividade incrível e muito difícil de situar. Por exemplo, dizem que ele era um homem de direita, e ele foi classificado como um dos líderes da esquerda entre as guerras na França. Como é possível? Onde ele estava? Me coloquei essas questões sem querer fixar a sua posição, mas, ao contrário, entrar na sua mobilidade, na lógica da sua mobilidade. É um livro no qual descrevo Malraux do interior, sem ser Malraux. Me disseram que é um livro em que me projeto em Malraux. Eu não me projeto, mas tento entrar em sua lógica, sem fazer sua psicanálise, o que é proibido, no meu ponto de vista, mas tento entrar em sua lógica, não hesitando, de tempos em tempos, em escrever uma cena possível, não inventada, mas também não certificada nem atestada do ponto de vista histórico, mas possível. Era o que eu queria, escrever algo que não fosse uma ficção, que não fosse uma biografia profissional.
Folha - Que importância tem Malraux para quem não o conhece, nem sua época?
Lyotard - Malraux é um clássico. É como dizer qual a importância de Balzac. Em relação à atualidade, é espantoso que se discuta se devemos aceitá-lo ou não. Isso me agrada. Em segundo lugar, há uma espécie de sabedoria sombria em Malraux, não é uma sabedoria de renúncia, bem ao contrário. Para ele, é preciso lutar contra o que é intolerável, mas não se deve pretender construir um sistema que acabe com a infelicidade. Para Malraux, não se pode pretender construir um regime político, ou uma filosofia, ou uma moral que acabe com a infelicidade. É preciso lutar contra a infelicidade sem querer mudar o mundo.
Folha - O sr. acha possível a criação de um modelo político alternativo ao neoliberalismo?
Lyotard - Não. Acho que o que se passou com o fim do império stalinista é que pela primeira vez na história do mundo não houve um contramodelo, porque o liberalismo, embora com todos os horrores que ele pode fazer, fez menos que o stalinismo. Nós aprendemos a pensar, depois das Revoluções Americana e Francesa, que a política consistia em opor um modelo comunitário, de independência dos trabalhadores, ao poder do capitalismo. O impressionante é que não vemos como pôr fim à dominação do capital. É preciso encontrar um modo de resistência, que não seja pela via política moderna, tradicional, de formação de grandes partidos contra o liberalismo, porque nós sabemos como isso acaba. Termina sempre da mesma maneira. Não há um exemplo que não prove que a luta contra o liberalismo produziu uma estrutura totalitária, que sob o pretexto de se liberarem, os povos se tornem escravos. É preciso achar um modo de resistência diferente.
Folha - É possível ainda usar categorias como esquerda e direita?
Lyotard - Falo do que eu conheço. Seja na Inglaterra, França, ou na Alemanha, os modelos ditos de esquerda são modelos liberais com um acento mais social, o que é importante, mas não vejo diferença de natureza, são diferenças de gestão. Quero uma política mais social, mas é extraordinariamente difícil de dosar, pois é preciso fazê-la de forma a não fazer fugir os capitais.
Folha - O conceito de pós-modernismo foi banalizado pela mídia?
Lyotard - Um aspecto evidente da pós-modernidade é que não tínhamos mais confiança na idéia de que, se fizermos uma boa revolução, vamos mudar o mundo. Não tínhamos mais confiança nisso, pois tínhamos exemplos de ruínas e massacres devidos a esse projeto geral da modernidade.
Ao mesmo tempo que tenho horror desse narcisismo que nos propõe a mídia, fico contente que possamos ver a televisão e ter informação. Isso cria problemas, a cultura muda de lugar, ela não está mais nos mesmos endereços. Se o que você chama banalização é o cinismo habitual da mídia, eu não gosto, mas se você chama de banalização o fato de que há informações e elementos de cultura que são transmitidos a povos inteiros, que antes eram absolutamente ignorantes, em comparação a gerações anteriores, então é muito bom.

Onde encomendar: "Signé Malraux" (Ed. Grasset, 360 págs., 138 francos), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, SP).

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