São Paulo, segunda-feira, 13 de janeiro de 1997
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Olha, está chovendo em nossos livros

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

As chuvas de verão têm sido impiedosas conosco, e talvez nem sejam as mais fortes. Elas me deram uma insegurança esquisita, quando vi que estava chovendo nos meus livros. Você não sabe se os retira rapidamente, ou se olha com carinho para cada um, como se fosse um despedida eterna.
A mais atingida foi uma revista sobre Beckett com inúmeras fotografias do escritor, artigos de amigos e parceiros. Tive de levá-la para debaixo da lâmpada e secar todas aquelas páginas coladas. Vendo as fotos de Beckett, tive vontade de pedir desculpas a ele. Mas já era tarde. Agora que a revista se molhou, resta salvá-la e ler logo, antes que algo aconteça com ela.
É triste lutar com livros ensopados e ver na televisão imagens de gente desabrigada, a lama descendo pelas ruas de Ouro Preto. Mas o reencontro com Beckett, pelo menos, abriu uma nova realidade para as horas vagas de verão.
Na manhã seguinte ao desastre, chega, pelo correio, a biografia de Beckett escrita por James Knowlson: "Damned To Fame". Já havia encomendado à Amazon Books, mas não deixou de ser uma coincidência: um livro seco, estalando, como o próprio texto de Beckett.
Estimulado pela chuva caindo na estante, estou agora mergulhado na vida do escritor que para mim foi mais que um grande artista, mas um verdadeiro acontecimento humano neste século.
Antes que o sol voltasse a brilhar, já estava às voltas com a família de Beckett, esses inevitáveis primeiros capítulos de biografia, onde taras, doenças e feitos domésticos são minuciosamente catalogados: o tio que bateu o recorde irlandês de natação, um outro que derrotou Capablanca, o campeão mundial de xadrez. Capablanca jogava contra muitos adversários, simultaneamente, mas, de qualquer maneira...
Beckett afirma que nasceu numa sexta-feira, 13 de abril de 1906. Knowlson diz que há dúvidas sobre essa data, mas o mais interessante no episódio é o distanciamento do pai, que vai passear nas montanhas para não acompanhar o trabalho de parto. Ao voltar para casa, o menino ainda não havia nascido, o pai ficou dentro do carro esperando que alguém gritasse: acabou. Esse "acabou", em outro momento, é retomado por Beckett para a expressão com que se saúda o nascimento de um personagem.
Knowlson não quis fazer uma ligação, mas também uma frase inicial em "Fim de Jogo", bastante significativa: "Acabou, Clov, acabamos...".
Ninguém teve seus textos tão interpretados como Beckett, de forma que é melhor deixá-lo em paz e talvez o livro de Knowlson consiga este feito, porque eram amigos e o texto foi trabalhado num nível de cooperação que Beckett não manteve por exemplo com Deirdre Bair, que publicou em 1978 a primeira grande biografia do escritor.
Nascido numa sexta-feira 13, numa família de grandes nadadores, Beckett reapareceu para mim com a chuva na estante. Havia outros livros que agora tento, pacientemente, recuperar, principalmente um ensaio sobre o colonialismo e sua invasão biológica, trazendo vírus, plantas e arrasando parte do que encontrou pela frente.
Beckett reina soberano entre os desabrigados da minha estante. Vejo suas fotos com óculos escuros redondos e penso nas primeiras performances de teatro de rua que vi na Escandinávia. Havia sempre um homem de cadeira de rodas, velho e magro, com óculos redondos e um gorro azul marinho.
Até que ponto sua própria imagem influenciou a concepção de alguns personagens. Beckett era muito preocupado em separar a vida da obra e por isso relutou tanto em admitir uma biografia. Foi um artista que se bateu contra o nazismo na guerra, chegou a ser condecorado, mas procurou isto tudo na maior discrição.
Vê-lo diante dos tribunais irlandeses, acusado de escrever obscenidades, saber que alguns de seus primeiros livros foram um fracasso arrasador de vendas, é um grande projeto de verão. Pode-se sair dele com um aprendizado sobre como escreve, ou um aprendizado sobre como se cala.
A chuva boa e prazenteira dos versos de Tom caiu pesada no Jardim Botânico, quase uma tragédia. Mas lá está Beckett, com os dedos tapando a própria boca, nariz adunco, óculos secando debaixo da lâmpada, parecendo dizer: sobrevivi, sobrevivemos.

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