São Paulo, segunda-feira, 13 de janeiro de 1997
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Iemanjá

DARCY RIBEIRO

Passei o ano com os pés dentro de água e de areia do mar que me trouxeram numa bacia.
Era o mar de Iemanjá que me vinha, ofertado. Mar que eu vi tantas vezes nessa data, arrodeado de milhões de gentes vestidas de branco, como eu também, saudando nossa santa.
À Iemanjá não se pede a cura do câncer ou da Aids. Pede-se que o amado não bata tanto, que a amada não seja tão safada e que nos venham novos amores.
Nunca cansei de admirar o poderio fantástico dos negros do Rio de Janeiro que reinventaram Iemanjá. Ela é, na Bahia e em São Paulo, em datas diferentes, uma deusa menor, capaz de pequenos milagres.
O crioléu do Rio, armado de sua potência criativa no plano cultural, deu uma de grego. De fato, só os gregos eram capazes de criar lascivas deusas do amor. Desde então, santidade é signo de virgindade e os cultos são castos e inocentes.
Os negros do Rio arrastaram Iemanjá para a passagem do ano, desalojando essa bobagem nórdica do Papai Noel.
Chamando toda gente a passar o ano nas nossas cálidas praias, comendo as frutas prodigiosas da estação: mangas, cajus, bananas, mil outras, em lugar das frutas secas que os coitados de outras latitudes, tiritando de frio, têm de comer.
Este ano, o culto de Iemanjá voltou a crescer. Calcula-se que 4 milhões de pessoas encheram toda a praia de Copacabana, encostados uns nos outros, vestidos de branco, procurando espaço para molhar os pés e jogar flores brancas para Iemanjá, pedindo mais amor.
Na hora mesmo da passagem do ano, todos se voltam para o céu, de olhos estatelados, vendo os fogos de artifício cada vez mais prodigiosos. Milhares de grupos de fiéis preservam seu círculo aberto onde mantêm velas acesas para o culto à Iemanjá. Haverá maior e mais bela festa que essa?
Não podendo ir lá, fiquei vendo o rio de gente que por todas as ruas ia enchendo a praia, e o mesmo rio de volta pelas mesmas ruas.
Na hora certa, pus os pés na bacia de água e de areia, recém-colhidas do mar, para dirigir-me à Iemanjá para pedir tudo que ela pode me dar, de amor, de gozo e de alegria, no escasso tempo que tenho à frente.
Além de belíssimo, o Ano Novo de Iemanjá é o evento cultural mais forte do Brasil, muito maior do que o Carnaval. Nasceu aqui, de nossas matrizes. Aqui se desenvolveu como um momento de alegria de um povo sofrido.
Eu vi nascer esse culto. Vi toda a perseguição que se fez para erradicá-lo e, hoje, vejo a beleza que é sua difusão por todas as praias do Brasil. Um vasto culto ao amor gozoso.

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