São Paulo, sábado, 18 de janeiro de 1997
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Minha fraqueza é minha força

RUBENS RICUPERO

Meu amigo Gelson Fonseca contou-me que, muitos anos atrás, quando a "transição lenta, gradual e segura" do regime militar parecia nunca chegar ao fim, estava almoçando num restaurante de Brasília em companhia de Cacaso, poeta raro que cedo se desencontrou da vida. A certa altura chega Ulysses Guimarães, cercado da corte habitual de fiéis do então aguerrido PMDB. Sabedor do passado do velho lutador como crítico literário da Academia de Direito de São Paulo, o poeta se ergue e lhe oferece sua última obra, um folhetim quase artesanal. Terminado o almoço, Ulysses se dirige a Cacaso para agradecer o livrinho e lhe diz: "Gostei muito. E não só gostei como encontrei nele um lema profético para o nosso esforço de unir a oposição". E lhe aponta um daqueles seus poemas, caracteristicamente minimalistas. Dizia apenas: "Unidos, perderemos".
A eleição de Tancredo mostrou que Ulysses e Cacaso estavam errados. Às vezes a vida acaba bem. Às vezes, raramente talvez, os fracos se fazem fortes. Foi o que vim dizer aqui em São José da Costa Rica, onde o avô do nosso embaixador Wladimir Murtinho, o ministro Mauro Fernández, realizou no começo do século uma das mais revolucionárias reformas educacionais do continente e o presidente Figueres, pai do atual, aboliu o Exército e utilizou os recursos liberados para investir no social.
Acaba de realizar-se em São José uma grande conferência dos países em desenvolvimento (China incluída) para dar impulso às relações econômicas entre eles. Na língua um tanto hermética dos diplomatas, chama-se a isso de "cooperação Sul-Sul", para destingui-la da "Norte-Sul" com os países desenvolvidos.
O debate do tema é marcado por uma curiosa contradição. Nunca foi tão volumosa, correta e realista como hoje a relação entre as economias menos avançadas. Não obstante, persiste o ceticismo dos próprios protagonistas, que continuam a olhar para os EUA, a Europa e o Japão como os únicos parceiros desejáveis do jogo econômico.
Vinte anos atrás, isso era verdade. Agora, porém, as perspectivas foram totalmente revolucionadas por uma reação em cadeias dos seguintes fatores que estão transformando o panorama econômico:
1º) Como era de se esperar pela história econômica do passado, as economias maduras reduziram a marcha e hoje, segundo as previsões da própria OCDE, a organização dos países industrializados, a Europa e os EUA devem crescer durante toda a década dos 90 a uma taxa modesta de 1,9% em média por ano e o Japão a apenas 1,4%.
2º) Em câmbio, os países em desenvolvimento crescerão a uma média de 4,5%, e alguns deles, sobretudo a China e os asiáticos, muito mais, entre 6% e 8%.
3º) Esses países se estão convertendo, assim, nos pólos mais dinâmicos da economia internacional, as novas locomotivas e são eles que vão gerar a maior parte da demanda adicional por importações, inclusive de procedência dos desenvolvidos, em outras palavras, é no Sul que se localizam os grandes mercados em expansão: China, Índia, Indonésia, Brasil.
4º) O fenômeno é, até certo ponto, autônomo, pois as economias asiáticas continuaram a expandir-se entre 6% e 11% nos últimos três anos, quando o Japão atravessava sua maior recessão do após-guerra e os mercados europeus apresentavam comportamento anêmico.
5º) Em resultado, pela primeira vez, os países em desenvolvimento são responsáveis por um quarto do comércio mundial e suas exportações e importações aumentam em ritmo de 3 a 4 pontos percentuais mais aceleradamente que a taxa média internacional.
6º) O mais animador é que um volume crescente desse aumento de comércio tem lugar no interior do espaço das nações em desenvolvimento, com o intercâmbio das dez maiores economias asiáticas, por exemplo, aproximando-se da soma do comércio desses países com os EUA e a Europa.
7º) Boa parte disso é fruto não dos esquemas demasiado ambiciosos e ingênuos do passado, mas sim dos acordos regionais realistas do presente, como o Mercosul, que multiplicou por três o comércio entre seus membros.
A mudança histórica a que estamos assistindo é a face oculta e positiva da globalização. Depois de 500 anos de intermediários, os países da Ásia, América Latina e África começam a comprar e vender diretamente, sem ter antes de passar por Londres, Paris ou Nova York. A lição mais importante a tirar desses acontecimentos é que acordos como o Mercosul ou a Asean proporcionam aos países em desenvolvimento não apenas uma dentre várias modalidades possíveis de integração à economia globalizada. Eles são na verdade e de longe a melhor alternativa para que essas economias ainda vulneráveis possam preparar-se de forma gradual, passo a passo, para os desafios de uma globalização avassaladora. É mais sensato e prudente enfrentar, de início, a concorrência daqueles que nos são próximos no nível tecnológico, nos recursos financeiros, no grau de industrialização, enfim, dos que são do nosso tamanho do que temerariamente subir ao ringue dos pesos-pesados. É preciso fazer uma força da nossa fraqueza, unir para competir.
Mesmo porque, como já sabiam os fabulistas, desde Esopo, passando por La Fontaine, quando a vitela, a cabra e o cordeiro tentam fazer sociedade com o rei dos animais, ele acaba por ficar com a primeira parte por se chamar leão, com a segunda pelo direito do mais forte, com a terceira por ser o mais valente e ai de quem se atrever a lançar mão da quarta.

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