São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Contradições de um ressentido

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A melhor coisa deste livro é o título. "Do Sentimento Trágico da Vida": eis palavras que podem funcionar como slogan, como exortação, como frase feita num discurso, sem que seja necessário ir adiante nas páginas deste enfático, repetitivo, confuso e célebre ensaio do espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936).
Cumpre, entretanto, fazer um resumo. Apontado como um dos precursores do existencialismo, Unamuno começa seu livro com uma crítica às abstrações da filosofia; é preciso voltar ao "homem de carne e osso", o homem que é antes um ser de sentimento, de afeto, do que o "ser racional" dos filósofos.
Na origem de todo conhecimento, prossegue Unamuno, está a vontade de viver, o instinto de conservação. Não conhecemos as coisas apenas pelo prazer de conhecê-las, mas sim porque o conhecimento é necessário à vida. Este desejo de imortalidade, imortalidade pessoal, do corpo e da alma, é o que nos move. Sabemos, entretanto, que vamos morrer.
A essência do cristianismo (assim se intitula o quarto capítulo) foi o esforço de dar uma resposta dogmática a esta angústia. "Em torno da ressurreição e da imortalidade de Cristo, garantia da ressurreição e da imortalidade de cada crente, formou-se toda a cristologia." Reduzir o cristianismo a uma moral, a uma cosmologia, seria uma traição racionalista. O que interessa, o que vale, é esse cristianismo "ingênuo", "rústico", o da ressurreição.
A Igreja, diz Unamuno, defende este dogma "contra o racionalismo, contra o protestantismo e contra o modernismo. Defende a vida". Mas, ai de nós, a própria Igreja se contaminou de racionalidade. Transformou a fé em teologia, tentou dar fundamentos filosóficos à crença, e, com isso, abriu flanco às dúvidas e às críticas da Razão. Mas provar racionalmente a imortalidade da alma, como tentaram tantos teólogos e filósofos, é puro sofisma.
A Razão frustra esse anseio de imortalidade que temos. Unamuno repete: "A Razão é inimiga da vida". E continua com entusiasmo: "A inteligência tende à morte... a mente busca o morto, pois o vivo lhe escapa... É um trágico combate, é o fundo da tragédia, o combate da vida contra a razão".
A esta altura -estamos ainda na pág. 88 do livro- torna-se irresistível um comentário crítico. Unamuno está obviamente abusando da linguagem. Dizer que a razão nada garante quanto à vida eterna é muito diferente de considerá-la "contra a vida". E uma crença na vida eterna pode ser claramente "contra" a vida pura e simples: pense-se nos martírios, nas inquisições, nas cruzadas, nas auto-imolações... tudo feito em nome da ressurreição futura.
Mas o que se pode dizer diante de um autor que está claramente empenhado em não ser racional? Cita com gosto a frase pascaliana: "Il faut s'abêtir", "é necessário embrutecer-se." E nem mesmo nisso ele é coerente. Seu "sentimento trágico" é precisamente essa cisão entre cérebro e coração, que ele celebra sempre que pode, e que exerce num texto que se contradiz sem cessar.
Não sendo possível voltar à fé do cristianismo primitivo, nem contentar-se com o que nos diz a razão, Unamuno tenta uma solução intermediária, que ocupará a segunda metade do livro. Nosso anseio de imortalidade há de criar, imaginar, uma "verdade" apesar de tudo.
Nada prova a existência de Deus. Mas "Deus pode chegar a ser uma realidade imediatamente sentida; e, embora não nos expliquemos com sua idéia nem a existência, nem a essência do Universo, temos às vezes o sentimento direto de Deus, sobretudo nos momentos de sufocação espiritual. Esse sentimento -o sentimento trágico da vida- é um sentimento de fome de Deus, de carência de Deus".
Mais um passo: "A fé cria seu objeto. E a fé em Deus consiste em criar Deus, e como é Deus quem nos dá a fé Nele, é Deus quem está criando a si mesmo continuamente em nós". Se o leitor tem esperança de ver alguma lógica no raciocínio acima, desista, pois o próprio Unamuno já a abandonou.
Juntam-se citações eruditas -Kierkegaard, os Evangelhos, Browning, Platão- a apelos sentimentais: "Creio em Deus como creio em meus amigos, por sentir o alento de seu carinho e sua mão invisível e intangível que me traz, que me leva e me aperta...".
O livro todo é escrito nesse tom conclamatório e patético; é uma mistura fuliginosa de audácia na bobagem, de desespero triunfal, de altaneria balofa, de reiteração sacolejante de raciocínios sem sentido. O leitor tem a impressão de estar andando sobre uma estrada cheia de buracos -e a estrada faz voltas e mais voltas para chegar ao mesmo lugar.
Mas no final topamos com o pior. O que parecia mera especulação inepta e verborrágica se revela, no último capítulo, uma defesa feroz da Espanha "profunda" contra a civilização européia. Há uma nova barbárie, diz Unamuno, que foi trazida pelo Renascimento, pela Reforma, pela Revolução Francesa. Há uma nova Inquisição, que é a Inquisição feita pela ciência e pela cultura. Em nome da "Vida", e da Espanha, Unamuno pede que se mantenha a luta -desesperada, impossível, ele reconhece- em favor da Idade Média. Savonarola! Os jesuítas! Joseph de Maistre! O Quixote!
Sempre dom Quixote. Loucura? Ridículo? Sim, claro que sim. A grandeza de dom Quixote, diz Unamuno, "foi ter sido zombado e vencido, porque era sendo vencido que vencia; dominava o mundo fazendo-o rir-se dele".
Todo esse sentimento trágico da vida se encerra, pois, numa espécie de sentimento íntimo de inferioridade nacional, de derrota que se quer, num passe de oratória, transformar em êxito. Mas não é possível imaginar um dom Quixote ressentido. É isso o que Unamuno, sem querer, termina sendo. Escrever um livro tolo é ato desculpável. Escrevê-lo, sabendo que é tolice e, mesmo assim, com fervor, empostação e alarido, usando da sombra de dom Quixote para justificar o próprio ridículo, é uma proeza que o meu vocabulário crítico não tem adjetivos para qualificar como merece.

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