São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Igrejas disputam alma do brasileiro

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quer seja visto como promissor ou alarmante, o crescimento das igrejas protestantes no Brasil e na América Latina foi extremamente rápido nos últimos anos. A Igreja Católica está cada vez mais espremida entre os protestantes, de um lado, e os cultos afro-americanos, de outro. Tanto católicos quanto protestantes buscam assim tornar a religião mais atraente ao comum dos homens. O Movimento de Renovação Carismática é uma tentativa de resposta à situação; as Comunidades Eclesiais de Base são outra. Em seu novo e movimentado livro, David Lehmann compara as estratégias de protestantes e católicos nessa "luta pelo espírito".
David Lehmann é diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos na Universidade de Cambridge. Seus interesses vão da religião à política, do Chile ao Brasil, da antropologia à economia. Seu novo livro é essencialmente um contraste entre os católicos e protestantes no Brasil, ou mais exatamente entre os "basistas", de um lado, e os pentecostais, de outro (em particular a Igreja Universal do Reino de Deus).
Lehmann faz uso do trabalho anterior de outros pesquisadores, como o de Heloísa de Souza Martins acerca dos católicos e o de Wilson da Silva Gomes sobre os protestantes, mas o núcleo do livro é o saldo de sua própria pesquisa em Salvador, realizada em 1991 e 1993. Seu enfoque etnográfico está baseado numa mistura de observação, conversa, participação e entrevistas.
Ele tem um olho aguçado para o detalhe -para a arquitetura das igrejas, o uniforme das "obreiras" da Igreja Universal e o pastor que, em meio à entrevista, "informa um colega distante, por telefone, sobre como evitar os impostos". O autor possui também um ouvido atilado para as expressões características -para não dizer "jargão"- dos dois grupos que estuda. Os "basistas" tendem a usar locuções como "revisão da vida", "a realidade do povo" ou "a perspectiva da libertação". Os pentecostais proclamam: "Jesus entrou em mim" ou "a Bíblia diz" e referem-se ao "maligno" ou às "trevas".
Contudo seu livro é consideravelmente mais do que um estudo local. David Lehmann tem plena consciência de que os ativistas pesquisados são membros de organizações internacionais, e o seu interesse repousa na interação entre o global e o local. Em busca de tendências globais, o autor compara e contrasta católicos e protestantes, Brasil e América Latina, e, numa passagem, Gustavo Gutierrez e Fernando Henrique Cardoso (apontados como dois intelectuais que envidaram esforços consideráveis para se distanciarem de interpretações radicais de suas idéias ou mesmo de suas antigas convicções). O interesse que Lehmann nutre pelas comparações o leva à Itália, onde o movimento "Comunione e Liberazione" é o equivalente dos "basistas", como também aos pentecostais na África.
O tema central de "Struggle For the Spirit" é a relação entre religião e cultura popular. O tratamento dado por David Lehmann à cultura popular é inspirado por Carlos Rodrigues Brandão (em especial "Os Deuses do Povo") e Pierre Bourdieu, embora ele tenha o cuidado de distanciar-se deles em certos aspectos.
Sua discussão sobre o tópico dá ênfase ao paradoxo. De fato, o senso de ironia e paradoxo do autor é uma das feições mais atraentes desse livro elegante e bem escrito. Ele nota, por exemplo, que a ideologia dos "basistas" revela hostilidade às tradições ocidentais, "fundada em conceitos de autenticidade e de respeito ao próximo que seriam impensáveis fora dessa mesma tradição ocidental". Quanto ao candomblé, lê-se que "embora ele remonte aos iorubas, tal foi o seu empenho por manter-se original e autêntico que ele tem cada vez menos em comum com as formas realmente existentes na atual Nigéria" -formas estas em constante mudança.
Com propriedade, Lehmann conclui o seu estudo com um par de paradoxos, um católico e outro protestante. De um lado, os "basistas" falam de uma "Igreja popular", festejam a "resistência popular" e tentam se associar à "capoeira", à "literatura de cordel" ou até mesmo a elementos do candomblé (como se pôde notar na Campanha da Fraternidade de 1988). De toda maneira, estes que apóiam a cultura popular permanecem afastados do próprio povo.
Mas na Europa do século 16 a cultura popular era extremamente resistente. Revelou-se impossível alterar práticas e crenças populares do modo esperado pelos reformadores. Hoje, por seu turno, graças à organização eficiente, ao talento para as vendas e ao uso da televisão (para não falar de outras forças da modernidade), a revolução cultural parece coroada de sucesso. Mas será que Lutero ou Borromeo se reconheceriam em Edir Macedo?

Tradução de José Marcos Macedo.

Onde encomendar:
"Struggle for the Spirit", de David Lehmann (Polity Press), pode ser encomendado, em SP, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio, à Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

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