São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 1997
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Um povo decente num país decente com leis decentes

DAVID DREW ZINGG
EM MONTREAL (CANADÁ)

O negócio aqui é sério -está fazendo MUITO frio no Canadá.
Um rapaz brasileiro como eu é capaz de virar picolé só de olhar a frígida paisagem canadense, recoberta de neve, pela janela.
No momento a temperatura lá fora é exatamente 8ºC. Estou falando em oito graus ABAIXO de zero.
Tio Dave está fazendo sua inimitável imitação de João Gilberto na primeira vez em que o cantor baiano visitou Nova York gelada e varrida pelo vento, em 1962.
João foi visto, naquela ocasião, vestido dos pés à cabeça, deitado na cama debaixo de uma verdadeira montanha de cobertores e dedilhando seu violão para não morrer do tipo de morte congelada normalmente reservada aos exploradores polares.
Se você ainda não está acreditando nas palavras de seu intrépido correspondente no Canadá, espere um instante e reflita sobre a seguinte verdade: o robô de controle remoto que a polícia de Montreal usa para desarmar bombas de terroristas se recusa a trabalhar neste frio.
Frio
Aqui em Montreal as pessoas são extremamente práticas. Têm um teste para cada tipo de condição climática, para saber se podem ou não sair de casa.
Por exemplo, é fácil saber que você não deve sequer cogitar em sair de casa quando seu cachorro sai primeiro e não volta -porque ficou congelado, grudado ao hidrante.
Canadenses
Fazia muito tempo que eu não vinha ao Canadá. Para quem está longe daqui, é fácil esquecer como este país é decente.
A palavra "decente" é inteiramente apropriada. Os canadenses são um povo decente, que têm a sorte de viver em um país decente, com leis decentes e uma cultura decente.
Ontem um repórter canadense me disse, em tom quase de quem pede desculpas, que os canadenses são educados para ser "acanhados". Para mim, é animador constatar que os canadenses não vêem a vida pura e simplesmente como uma chance para agarrar seus famosos 15 minutos de fama passageira na TV ou nos jornais.
O canadense tem muitas razões para se sentir grato por viver do lado setentrional do paralelo 49 e não na Gringolândia.
Muita coisa boa pode ser dita sobre a vida neste país. O canadense tem muitas bênçãos a contabilizar: cidades seguras, o mais alto índice de atendimento médico por pessoa, um sistema de ensino público que realmente funciona, leis efetivas de controle de armas e um sistema político que se conserva em grande medida livre da corrupção.
Além disso, há o senso básico de justiça que têm os canadenses.
Diferentemente dos enormes extremos de riqueza e pobreza que parecem ser aceitos como comuns e corriqueiros no Brasil, no Canadá as pessoas se ofendem e se chocam com as grandes disparidades de posição individual.
Para um canadense, existe algo de fundamentalmente errado no fato de o presidente de um banco ou um empresário ganhar milhões de dólares, enquanto milhões de crianças vivem na miséria.
Já os brasileiros e os gringos, de modo geral, não se chocam com enormes disparidades de renda.
Parece que consideramos rendas multimilionárias como recompensas justas e razoáveis do sucesso no mercado. A equação dominante parece ser: "Quanto mais rico, melhor você é".
A escala de valores humanos parece basear-se no preço de venda do último modelo de automóvel. Um Ferrari ganha de um Mercedes, que ganha de um BMW, que, por sua vez, ganha de um Honda.
E você, Joãozinho, o que anda dirigindo nestes últimos anos -um Volkswagen brasileiro?
No Brasil, nos EUA e no Canadá está aumentando a disparidade entre ricos e pobres.
No Canadá o fenômeno é visto como um problema social preocupante.
No Brasil e nos EUA, a tendência é amplamente aceita. Apenas um ou outro "intelectual" tece reflexões sobre seus possíveis efeitos negativos sobre aquela coisa efêmera conhecida como a alma humana.
Ah, Canadá!
Qual dos países de grande massa terrestre se destinava a ser o noivo da nação brasileira? Seu amante? Sua alma gêmea?
Era para ser os malditos "Ewe Ess of Ay" ou "Cana-bloody-da"?
Quem sabe, talvez, os países e suas culturas tenham destinos preordenados.
O Canadá pode ainda, espero eu, se decidir a pedir a mão do Brasil em sagrado matrimônio.
Seria uma coisa muito boa, como dizem por aqui. Boa para o Brasil e boa para o Canadá.
O Canadá, aquele noivo extremamente decente, se esforçaria para convencer o Brasil, aquela noiva tropical e caprichosa, de alguns sólidos e satisfatórios sistemas de valores humanos.
E o Brasil, a irreverente Garota de Ipanema, ensinaria seu noivo setentrional a dançar samba.
Frio 2
Está tão frio por aqui que eu finalmente percebi o que posso fazer com o frigobar no meu quarto de hotel. Ontem à noite coloquei minhas meias lá dentro para deixá-las quentinhas para vestir amanhã.
Fama de verdade
A vida é realmente estranha. Ao lado de minha certeza de que iria ganhar cerca de R$ 100 milhões na loteria estava minha convicção de que eu seria entrevistado na televisão Canadian Public Service.
A verdade é que deixei de ganhar a loteria por pouco -mas nesta semana fui realmente convidado a aparecer num programa canadense de notícias, muito sério.
O programa se chama "World Affairs" e é apresentado por uma versão jovem e canadense de Walter Cronkite.
Tio Dave deu o melhor de si pelo Brasil, responsabilidade na qual não foi ajudado pelo fato de ser chamado às 7h, horário de trabalho mais apropriado aos entregadores de leite.

Tradução Clara Allain

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