São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 1997
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A questão das súmulas vinculantes

MIGUEL REALE

Parece-me que tem sido posto em plano puramente pragmático o problema da subordinação obrigatória dos juízes inferiores às súmulas dos tribunais, ou seja, às decisões que consagram seu entendimento sobre dada matéria, firmando, conforme linguagem forense, jurisprudência mansa e pacífica.
A bem ver, esta torna meramente protelatórios os recursos interpostos, determinando insuportável sobrecarga nos serviços de Justiça, como tem sido demonstrado, com razão e veemência, pelo ilustre ministro Sepúlveda Pertence, presidente do Supremo Tribunal Federal.
Não obstante a alta relevância desse aspecto do problema, não creio que somente ele seja bastante para superar ou amenizar a atual crise do Poder Judiciário.
Esta é devida também -e é apenas um exemplo- ao amplo poder que a Constituição de 1988 outorga aos magistrados de primeira instância, os quais, com frequência, deferem pedidos liminares que suspendem, em todo o território do país ou dos Estados, a aplicação de leis federais e estaduais, extrapolando assim o âmbito de sua jurisdição, o que obriga as partes vencidas a recorrer às cortes mais altas, a fim de restabelecer a eficácia dos mandamentos legais.
Eis aí um dos problemas que não poderão deixar de ser devidamente examinados quando se cuidar da reforma do Poder Judiciário, da qual pouco se fala, apesar de sua manifesta urgência.
Atendo-me, por ora, apenas ao estudo da "súmula vinculante", observo que a reforma proposta não será suficiente se não houver mudança de mentalidade, notadamente por parte de nossas autoridades administrativas, as quais, verdade seja dita, às vezes insistem em recursos inviáveis por absoluta carência de meios financeiros, preferindo ganhar tempo até haver pronunciamento definitivo do órgão judicial competente, invocando a súmula.
É que, na experiência jurídica dos povos filiados à tradição da "Codificação Justiniana", como é o caso do Brasil, a lei representa a expressão por excelência do direito, de tal sorte que, apesar da imperatividade outorgada a uma decisão judicial, haverá sempre modo de invocar uma disposição legal em caráter transitório...
Já o mesmo não acontece nas nações do "common law", como a Inglaterra e os EUA, em cujo amplíssimo campo das relações privadas prevalecem as normas estabelecidas pelos usos e costumes consagrados pelas decisões judiciais, segundo o princípio do "stare decisis", o que faz com que os ingleses se declarem mais romanistas do que os latinos ou os alemães, visto serem estes herdeiros do Direito Romano Cristão codificado pelo imperador Justiniano, com o primado da lei, enquanto que aqueles se mantêm fiéis ao Direito Romano Clássico, fundado na doutrina dos jurisconsultos acolhida e legitimada pelas decisões dos pretores.
Ora, a idéia da súmula surgiu, sobretudo, graças aos méritos do saudoso e douto ministro Vitor Nunes Leal, como um enxerto feliz do "common law" no ordenamento de nosso "civil law", e, aos poucos, foi ganhando força e virtude, não, contudo, até o ponto de alterar nosso tradicional e formalista apego à lei até suas últimas consequências.
Como se vê, ao lado da revisão constitucional necessária para dar força vinculante às súmulas, permanecerá sempre um problema de natureza social, ligado à nossa tradição jurídica, sem se esquecer que o acúmulo dos serviços judiciários é também reflexo da crise econômico-financeira que atormenta os entes da administração direta e indireta, bem como do obsoletismo e formalismo que caracterizam nossa legislação, sem falar no "totalitarismo normativo" da Carta em vigor. Basta lembrar que há quem considere inconstitucional a recente e oportuna lei sobre juízo arbitral!
Por outro lado, se se justifica plenamente a vinculação dos juízes às súmulas, devemos, outrossim, nos prevenir contra o indefinido congelamento delas, a despeito de exigências essenciais supervenientes em razão de mudanças operadas no plano dos valores, dos fatos e da própria ordem normativa.
O "aggiornamento" das súmulas será, assim, um dever primordial dos tribunais, pois elas, como costumo dizer, apresentam um "horizonte normativo" sujeito a ser atualizado à medida que o viajor avançar.

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