São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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A face oculta da exclusão social

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Quando o mais recente livro de William Julius Wilson, "When Work Disappears" (Quando o Trabalho Desaparece), foi lançado em setembro, a reação da comunidade intelectual norte-americana foi comparável com a que, no universo pop, cerca a chegada de um novo disco de Michael Jackson.
Wilson é um mito na academia norte-americana, uma espécie de "príncipe dos sociólogos" dos EUA. Quando, após 24 anos, ele deixou a Universidade de Chicago para integrar o corpo docente da Universidade de Harvard, sua decisão foi interpretada como sinal de decadência das ciências sociais em Chicago.
Um dos motivos por que a revista "Time" afirma que nenhum pensador explicou melhor do que Wilson os problemas dos negros e o jornal "The New York Times" o classificou de "gigante intelectual" foi o fato de que nas décadas de 60 e 70 o sociólogo sofreu por ter preferido se manter mais fiel a seus princípios metodológicos do que a seus princípios ideológicos.
Apesar de na época ser inaceitável para a esquerda, Wilson, que é negro, concordou com as conclusões de um célebre estudo sobre as relações raciais feito em 1965 pelo atual senador Daniel Patrick Moynihan sobre a desintegração das famílias negras. Dez anos depois, num de seus livros, ele admitiu que uma poderosa classe média negra tinha se estabelecido no país em consequência das mudanças legislativas obtidas após o movimento pelos direitos civis e que os integrantes dessa classe média negra se comportam de maneira muito diversa da dos negros ainda pobres.
Apesar de ter sido hostilizado pela esquerda, Wilson não aderiu ao neoconservadorismo e, aos poucos, reconquistou o respeito de seus parceiros de ideologia sem perder o dos adversários. Assim, Wilson se tornou unanimidade.
"When Work Disappears", no entanto, tem gerado muita discussão, na qual os pólos voltaram aos seus lugares "normais": a direita discorda das conclusões de Wilson, e a esquerda as apóia.
A base do seu raciocínio é conhecido: empregos que exigem baixa qualificação intelectual, antes exercidos por negros nos EUA, estão sendo cada vez mais exportados para países do Terceiro Mundo, em que a mão-de-obra é mais barata, ou sendo ocupados por imigrantes latinos, que aceitam qualquer trabalho, muitas vezes por salários abaixo do mínimo, por estarem em condição ilegal no país.
Essa ausência de ofertas de trabalho coloca os negros na dependência do seguro-desemprego oferecido pelo governo federal. Como o trabalho é, na opinião de muitos sociólogos, Wilson entre eles, o principal estruturador do caráter humano e o mais importante regulador das relações familiares, sua ausência provoca comportamentos sociais indesejáveis (divórcio, crianças filhas de pais solteiros, crime, consumo de drogas) que acabam se perpetuando.
A solução proposta no livro horroriza os conservadores: mais programas sociais sustentados pelo governo federal para gerar novos empregos. O presidente Bill Clinton conversou com Wilson a respeito dessas propostas, mas seu governo, em princípio liberal e não conservador, não só não parece disposto a segui-las como promete reduzir de maneira dramática os benefícios do seguro-desemprego como fórmula para reduzir o déficit público federal.
Wilson baseia todo o seu trabalho na pesquisa de oito anos que realizou nos guetos negros de Chicago. Mostra com extensivas estatísticas como os empregos sumiram nesses bairros da cidade ao longo dos últimos 30 anos.
Se o limite geográfico a que o autor se impôs aumenta a precisão do trabalho, o fato de não levar em conta dados de outras cidades prejudica a possibilidade de generalizar as suas conclusões.
Por exemplo, é conhecido o fato de que em Nova York a explosão do crime nos redutos negros aconteceu muitos anos antes de os empregos desaparecerem de lá. O sucesso em Nova York desde 1994 no combate ao crime mostra que pelo menos alguns comportamentos indesejáveis podem ser reduzidos de maneira dramática sem eliminar as suas raízes.
Expoentes tanto da direita quanto da esquerda acham que é preciso cortar as causas do crime para diminuí-lo (para a direita, as causas são culturais, para a esquerda, econômicas). Mas em 1996 o número de homicídios em Nova York foi de 983. Desde 1968, não se registrava número menor do que mil assassinatos na cidade. Em 1992, haviam sido mais de 2.000. O êxito foi obtido com mudanças na maneira de a polícia atuar.
Os adversários de Wilson argumentam que os empregos desapareceram para os negros pobres por causa do seu comportamento, não que o comportamento é decorrência do desaparecimento de empregos. Alguns dos depoimentos colhidos por Wilson na parte etnográfica de seu trabalho podem ser usados por seus oponentes. Por exemplo, os de pequenos empresários negros que dizem não aceitar empregados que moram nos guetos negros por considerá-los desonestos, violentos.
É com base nesses depoimentos que Wilson desenvolve seu raciocínio sem cair na fácil armadilha de responsabilizar o racismo pelos problemas dos negros. Ele até acusa a presença de sentimentos racistas nos empresários brancos que lhe disseram as mesmas coisas sobre suas experiências com empregados negros. Mas não afirma que o problema do comportamento anti-social de negros inexista em si.
Wilson acha que, se houver mais empregos e creches, as mulheres irão trabalhar e as crianças serão melhor educadas. Seus críticos dizem que, se o seguro-desemprego for eliminado, as mulheres irão se casar, o que dará às crianças melhor formação. A crueldade das soluções conservadoras é evidente. Mas a ingenuidade das de Wilson também. Porque muitos dos empregos que ele sugere sejam criados pelo governo federal (auxiliares de bibliotecas públicas, assistentes em jardins-de-infância) não poderão ser ocupados por pessoas sem treinamento adequado ou com padrões de comportamento como os da maioria dos atuais desempregados crônicos.
O problema é complexo demais para ser explicado apenas pela teoria do determinismo econômico e talvez, como sugerem as estatísticas de crime em Nova York, as soluções sejam mais simples e pontuais do que a total transformação da sociedade sugerida por Wilson.
Se lideranças comunitárias negras gastassem menos energia e recursos em confrontos e mais em programas de treinamento profissional, se a polícia agisse de maneira mais eficiente, se a educação pública fosse mais séria, talvez muitos componentes do quadro pudessem ser alterados de maneira positiva. O Exército, que pela primeira vez desde 1979 talvez tenha um déficit de alistamento este ano, poderia concentrar seus esforços de recrutamento entre esses jovens desempregados, não entre setores da classe média (uma das exigências aos candidatos ao Exército é o curso colegial completo).

Onde encomendar: "When Work Disappears" (Knopf), de William Julius Wilson, pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

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