São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Páginas arrancadas

MARIA CRISTINA FRIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES

O diário da adolescente Anne Frank completa 50 anos com uma edição anunciada como a mais completa, sem cortes. A publicação no Reino Unido de "The Diary of a Young Girl: The Definitive Edition", pela Editora Viking, com as passagens que haviam sido censuradas por Otto Frank, pai da menina, foi muito festejada pela imprensa britânica.
O jornal inglês "The Times" destacou a obra que chega às livrarias do Reino Unido no próximo dia 6 como o fato mais importante na área de cultura da semana passada. Anunciou na primeira página durante três dias que publicaria uma série com trechos do livro. Os extratos da obra saíram em quatro edições consecutivas.
Ao editar as memórias da filha pela primeira vez em 1947, Otto Frank preferiu omitir cerca de 30% do texto, principalmente as reflexões sobre sexo, que não eram comuns em diários de mocinhas da época. Além disso, em consideração aos outros moradores do esconderijo onde Anne ficou com a família, Otto suprimiu também comentários pouco elogiosos que a garota escrevera sobre eles.
A história de Anne é bem conhecida. Ela chegou ao anexo da Prinsengracht, 263, em Amsterdã, no dia 12 de junho de 1942, aos 13 anos de idade para se esconder dos nazistas. Durante mais de dois anos fez anotações sobre a vida enclausurada e angustiante que viveram ela e mais oito pessoas: seus pais, Edith e Otto Frank, a irmã Margot, o casal van Daan, seu filho, Peter e, mais tarde, um dentista, Dussel.
Em 1º de agosto de 1944, o esconderijo é descoberto e todos são presos. Ela tinha então 15 anos. Os judeus foram levados para Westerbork, um campo transitório no norte da Holanda, do qual foram deportados no início de setembro, na última viagem antes do fim da guerra para Auschwitz, na Polônia.
Anne sonhava em se tornar uma atriz em Hollywood ou uma escritora. Depois da guerra, o pai -o único sobrevivente entre aqueles que estiveram escondidos no anexo- resolveu homenagear a filha, publicando suas memórias, sem as passagens mais íntimas.
Segundo o jornal "The Times", a autenticidade do diário foi questionada diversas vezes. O Instituto Holandês para Documentação de Guerra e a Fundação Anne Frank provaram há alguns anos na Justiça que o texto é realmente da filha de Otto Frank. Foi então editada uma versão integral do diário.
Entre os trechos que tinham sido cortados estão aqueles que revelam a descoberta do amor entre Anne Frank e Peter van Daan. Conforme vai se apaixonando, Anne começa a relatar o que sente sobre as mudanças que acontecem em seu corpo e suas emoções. Ela escreve sobre sexo, menstruação e paixão com uma desenvoltura surpreendente para a sua idade, para a época em que vivia e as condições limitadas que tinha, isolada do mundo.
"Estou tentando ao máximo não ficar muito em cima do Peter, mas não é fácil. Estou em um estado de confusão total: de um lado, estou meio louca de desejo por ele, e de outro, fico pensando porque ele se preocupa tanto e porque eu não consigo mais ficar calma", escreveu ela.
Em passagens como esta, a autora nem parece a mesma Anne Frank.
"Anteontem à noite, eu sonhei que estávamos no quarto de Peter, um frente ao outro, ao lado da escada. Eu disse algo para ele; ele me deu um beijo, mas acrescentou que não me amava tanto e que eu não deveria flertar. Com uma voz desesperada e meio na defensiva eu disse 'eu não estou flertando, Peter!'±", contou ela, quando a amizade com Peter se tornava mais íntima.
Depois de ter sido lido por várias gerações, o diário ainda mantém um certo frescor. Tem bom ritmo, pouco sentimentalismo e agora, na íntegra, ainda mais chances de que jovens se sintam atraídos pelas experiências da garota durante a guerra na Holanda ocupada.
A descrição verídica da angústia e das dificuldades de estar escondida, do horror que se abateu sobre os judeus, da efervescência de idéias e sensações próprias da adolescência, dos conflitos em família e com os estranhos e a observação, às vezes bem-humorada, dos hábitos dos residentes do anexo continuam cativantes.
A revelação dos trechos censurados trazem à tona uma Anne Frank insuspeitada. Muito mais real, mais próxima do que todo adolescente é e, por isso mesmo, mais interessante. Fala de sexo, às vezes inveja a irmã mais velha, odeia a mãe e adora o pai. Mostra o excitamento e o embaraço característicos de um primeiro envolvimento amoroso.
Quer ser independente, mas tem que enfrentar todos esses conflitos entre as paredes do anexo. Descreve tudo isso e as pessoas com quem tem que conviver com uma fina ironia irreconhecível na doce e inocente Anne Frank do diário censurado.
Onde encomendar:

"The Diary of a Young Girl: The Definitive Edition", pela Editora Viking, pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033). No Brasil, "O Diário de Anne Frank" foi editado pela Record.

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