São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 1997
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Reeleição e melancolia na metáfora do 'Velho e o Mar'

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

O caiaque deslizava pela baía de Jacuecanga e ouvíamos apenas o plash plash dos remos na água do mar. O dono do barco e meu guia pelas rotas de Angra e Ilha Grande disse:
-Está na hora de voltar.
-Está na hora de votar -respondi.
Acabava ali um tranquilo fim-de-semana. Tínhamos visitado um aquário cheio de garopas, badejos, tartarugas; o avião me despejaria direto em Brasília, no grande aquário onde se reúnem os peixes engravatados, nadando para salvar a pátria.
Meteórica melancolia passou por mim. Fim de férias, isso acontecia com os primeiros ventos de outono. Vejo Clinton tomando posse para o segundo mandato e não há no discurso nem vestígio dos sonhos do passado.
Descubro também que Nixon, nos seus diários, mencionou com certa precisão o sentimento de melancolia que viveu, ao começar o segundo mandato, dramaticamente interrompido pelo escândalo de Watergate.
Reeleição e melancolia parecem ser elementos indissociáveis quando chegam os deputados para o primeiro dia de seu mandato de quatro anos. Os olhos dos que voltam perdem um pouco de seu brilho, não devoram o que há em torno, não se surpreendem; cumprem apenas um tedioso ritual de posse.
Se alguma coisa se perdeu no olhar dos reeleitos, se a melancolia baixa como numa Quarta-Feira de Cinzas, como explicar que invistam nesse desejo energias quase tão revolucionárias como as de uma paixão amorosa?
Com perdão de Freud, um especialista em melancolia, talvez Jung possa nos dar uma pista mais segura para entender os reeleitos, se é que essa tarefa é possível.
Na literatura, pelo menos, existem arquétipos, modelos recorrentes de comportamento que atravessam as mais diferentes culturas. Os temas da morte e da ressurreição, do conflito de gerações, a tentativa prometeica de resgatar poderes dos deuses, o sacrifício para aplacar sua fúria, a busca da suprema verdade e a constatação de que ela está além do horizonte da mente humana -tudo isso são jogos da essência humana, vitórias e derrotas que revelam o nosso incontornável paradoxo.
Arthur Koestler menciona no seu Ato de Criação os 36 diferentes enredos que Goethe catalogou, mas procura se concentrar nos arquétipos. Prometeu lutando pela onipotência e onisciência é simbolizado na luta de Jacó com o anjo, no vôo de Ícaro, na lenda de Fausto, passando por personagens de Dostoievski, desaguando na cultura de massa com os heróis que povoam nossa infância, como o Super-Homem.
Ninguém na vida real vive uma modalidade pura de enredo literário. Há os subenredos. Um deles é o do "coração dividido", conflitos entre amor e dever, autopreservação e auto-sacrifício, meios e fins, fé e razão.
Talvez a chave da melancolia dos reeleitos não esteja nem aí, nessa batalha tão humana para arrebatar poderes divinos. Há quem afirme que é bobagem ter sonhos, melhor é deixar que a vida corra suavemente como o caiaque deslizando pela baía, integrado na água, na brisa marinha, esquecido de si.
Se cada sonho conquistado é uma decepção, os reeleitos então vivem uma dupla ressaca no dia da posse. Não estão mais esculpindo a própria estátua, mas batendo o relógio de ponto para uma longa jornada burocrática.
O sonho, na verdade, é sempre uma antevisão da realidade sonhada. Por mais que nos alegremos com a conquista, ter sonhado foi também ter roubado um pouco o absoluto ineditismo do que acontece, de uma certa maneira, antecipando a vitória em nossa fantasia e condenando-a a ser uma repetição -uma espécie de morte.
Num mundo em que vitória e vencedores são glorificados como o valor quase absoluto, talvez valha a pena rever os enredos da literatura.
Mergulho de despedida, sal nas narinas, penso que, daqui a pouco, votarei a reeleição, lembrando do pescador Santiago, da novela "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway. O peixe que ele pescou e o esqueleto que chegou na praia são ainda uma das mais fortes metáforas para toda essa batalha.
Melancolia é um sentimento que registramos apenas nos diários íntimos, como fez Richard Nixon. Publicamente vivemos táticas, estratégias e anunciamos para onde sopram os ventos.
A luta pelo poder é mais bruta que um jogo de futebol: não há espaço para lágrimas furtivas.

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