São Paulo, quinta-feira, 30 de janeiro de 1997
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Vida canina

MOACYR SCLIAR

Ela era jovem, bonita e desinibida, tão bonita e desinibida que chamava a atenção; na praia era frequentemente abordada por rapazes, o que até a obrigava a andar com um enorme e feroz cão. Ele, pelo contrário, era feio e tímido, tão tímido que tinha medo de falar com moças. Mas quando a viu -de longe, na praia- não teve dúvida: era o grande amor de sua vida. Sem coragem para dirigir-se à garota, descobriu o endereço dela no correio eletrônico e mandou-lhe uma terna mensagem. Ela a princípio se surpreendeu: nunca tinha recebido uma cantada assim. Divertida, resolveu responder. Iniciou-se uma correspondência e em algum momento ela sentiu que estava completamente apaixonada pelo desconhecido. O que a deixou contrariada: amor platônico não era com ela. Parecia coisa de romance do século 19, daqueles enamorados que trocavam longas missivas. Mandou uma mensagem decisiva: precisamos nos encontrar.
Ele demorou a responder. Sim, queria vê-la de perto, queria segurar sua mão, queria até beijá-la -mas a simples idéia de fazê-lo deixava-o em pânico. Durante vários dias lutou com a timidez, até que por fim respondeu: sim, poderiam se encontrar. Ela então sugeriu a praia. Ele relutou -sem roupa não era exatamente uma figura atraente-, mas acabou concordando.
No dia marcado, lá estava ela, no local combinado. Belíssima, em sua tanga. Mas aí ele viu algo que quase lhe fez parar o coração.
O cachorro. O enorme cão que a acompanhava, e que mais parecia um lobo feroz.
Claro, ele sabia que o cão estava ali para defendê-la dos importunos. Aliás, ela não era a única a recorrer a esse tipo de proteção. Várias outras moças estavam também com seus cachorros, cada um maior que o outro.
O problema era que ele tinha um medo terrível de cães; desde que, criança ainda, tinha sido atacado por um dobermann. Mas como dizer à amada que não podia se aproximar dela por causa do cachorro? Hesitou ainda uns minutos e finalmente, o coração acelerado e um sorriso forçado no rosto, foi em direção à bela da praia. Um segundo depois estava no chão, o cachorrão em cima dele rosnando, ameaçador. Foi um caro custo tirar o bicho dali.
Ele teve de ser internado numa clínica, para se recuperar do trauma. Não recebe visitas, nem sequer da moça; o médico não acha prudente. Quanto a ela, está com o coração dividido. Por um lado, é sincera a afeição que sente pelo desafortunado jovem. Por outro lado, gosta de seu feroz cachorro. Se pelo menos ele rosnasse, suspira, mas sabe que isso é impossível. Rosnar é coisa para cachorros, não para rapazes sensíveis.

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